EQUADOR EM QUATRO TEMPOS

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Narrativas de Bolso

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Edvaldo Pereira Lima

2 –   Viagem na História com Olga e Passageiros   Notáveis da Arte Popular

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Problemas com a altitude elevada de Quito?

Pouca coisa, apenas dor de cabeça leve.

O primeiro almoço é igualmente leve, para garantir a adaptação. No começo da tarde do primeiro dia, pouco mais de doze horas após a chegada, já aventuramos sair a campo.

Vamos descobrir em breve que os táxis são baratos na capital do Equador. Há corridas a menos de dois dólares, algumas a cinco ou seis para distâncias que em São Paulo valeriam 50 ou 60 reais. A questão da segurança, para evitar um dissabor de um eventual sequestro-relâmpago ou simplesmente de um taxista mal-intencionado que vai lhe extorquir, é fácil de resolver. Basta escolher, na rua, os táxis amarelos com uma espécie de grande selo azul ou verde nas portas. São a garantia de que o motorista está  credenciado pelo órgão competente da municipalidade de Quito.

Nesta primeira incursão, porém, faço a escolha mais conservadora: contrato um motorista executivo de confiança que presta serviços ao Stubel. Dez dólares a hora, à disposição para rodar por toda a cidade.

Eduardo Sparza deve ter pouco mais de 50 anos. É simpático, atencioso e discreto, uma atitude aberta a bem servir o cliente. Qualidades que vão nos chamar a atenção, a mim e a Frances, nos equatorianos. Pelo menos nos que trabalham em turismo. Gente boa.

A primeira missão de Eduardo   – que já esteve no Brasil três vezes buscando ônibus em fábrica na região de Curitiba, para a empresa que trabalhava –  conosco não é nos conduzir a nenhuma atração turística.  É nos levar para resolver um problema operacional de quase todo turista estrangeiro ao chegar ao Equador.

O país dolarizou a economia no ano 2000.  Como não produz sua própria moeda e sim a importa dos Estados Unidos, há falta de notas de valor alto, como 100 e 50 dólares. Turista normalmente chega com notas desses valores, por uma questão de segurança. Dá muito na vista você viajar com notas de pequeno valor, concorda? O volume no bolso, essas coisas.

O resultado disso é que o comércio tem muita dificuldade para aceitar sua nota de 100 ou 50.   Não tem troco em papel de valor menor, 20 ou 10, ou em moedas. Nem no hotel conseguem nos trocar alguma coisa para as pequenas despesas correntes na rua.

Depois de uma tentativa frustrada no banco mais próximo, aprendemos que o único lugar para se trocar dólares na cidade é a sede do Banco Central da República do Equador.

Ufa!

Enfim, a primeira atração turística imperdível da viagem. Está em diversas listas de dicas para turistas. Escolha da Frances, elegante e fina admiradora da arte, senso estético apurado, uma dose de artista na alma. Endosso meu, curioso pela cultura nativa dos lugares e mais ainda pela mescla entre a originalidade local e a fertilização renovadora impulsionada pela contribuição cultural que vem de fora.

Olga Fisch Folklore

Espaço cultural que é ao mesmo tempo galeria de arte, loja de artesanato elegante, pequeno museu de antiguidades, na Avenida Colón.

Um deslumbre!

Ponchos em diversas texturas e desenhos. Brincos e braceletes em pedras semipreciosas de cores vivas.  Quadros tecidos em lã de cenas pitorescas dos pueblitos e dos povos dos Andes. Esculturas de figuras típicas, vestimentas e cenas de festas populares. Brinquedos artísticos. Decoração interna belíssima, pinturas aplicadas no próprio teto.  E os chapéus de Panamá que, juram os equatorianos, são na verdade de origem de seu país. Deveriam se chamar chapéus do Equador, então, mas pegaram fama mundial pelo uso massivo por parte dos trabalhadores durante a construção do Canal do Panamá, inaugurado em 1914.

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Foto por Frances RoseLotus

Escadaria de madeira de beleza excepcional que conduz ao pequeno museu no andar de cima do casarão, onde estão abrigadas peças da cultura pré-incaica e pré-colombina do Equador, assim como da era colonial.

O guia é Segundo Conejo, um igualmente discreto e simpático membro do um grupo étnico de Otavalo. A 110 quilômetros ao norte de Quito, é a cidade sede da etnia indígena quíchua e seus distintos povos, e do mercado artesanal nativo mais famoso do país. Um dos maiores da América do Sul, dizem, célebre pela belíssima arte têxtil de cores brilhantes, que se traduz em ponchos, almofadas, camisas, calças, chapéus andinos.

Mas aqui, Conejo, também pintor nativo agora residente em Quito, abre as relíquias do museu que de súbito dão-me um insight para a compreensão da cultura popular equatoriana.  Houve uma espécie de simbiose cultural entre a arte religiosa católica, imposta pelos colonizadores espanhóis, e a rica tradição dos povos nativos. Essa mescla também se configura em festas populares que nasceram das celebrações católicas, mas receberam a influência fertilizadora das tradições locais.

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Foto por Frances RoseLotus

Em paralelo à arte, a descoberta do lado social dessa história.

No Equador, como em todos os países de colonização europeia, as elites dominantes desprezarem as culturas locais por muito tempo. O olhar, contaminado pelos filtros europeus, não conseguia captar, muito menos apreciar, toda a configuração nova de rica percepção das culturas de cada povo conquistado. Em Manaus da época da borracha, as elites mandavam roupa para lavar na Europa, dizem as más línguas. E nem era de Boeing!  Era de navio! No Equador acontecia algo parecido, contam-me.

O preconceito contra os povos nativos imperava. Alastrou-se para os mestiços, filhos inter-raciais, que no vizinho Peru receberam o nome pejorativo de cholos e que prontamente se alastrou para praticamente toda a América espanhola.

Para as elites, a cultura válida era a alta, clássica, de sabor europeu.  A cultura nativa era desprezada, considerada chula, motivo de descaso pelos seus vizinhos se você ousasse adquirir uma peça de um artista local.

Essa realidade passou a mudar, no Equador, graças, entre outras pessoas, à senhora que dá nome a este local.  Aqui foi sua residência por muito tempo. Uma parte da casa reservada à sua vida privada, a outra desde sempre aberta como ponte entre a arte de raiz e a cultura entronizada no alto pedestal onde colocamos, talvez com arrogância, o que classificamos como arte de valor superior.

A casa simboliza a ponte. Mas essa senhora que a fez acontecer encarna outro fenômeno. Pois foi muito mais. Olga Fisch é considerada a grande madrinha do artesanato equatoriano. Sua história, marcante. Num subcapítulo dessa saga, a surpreendente descoberta de um coadjuvante brasileiro.

Precoce e determinada, a menina Olga Anhalzer diz um dia aos quatro anos de idade, conta a lenda da família, que vai ser pintora quando crescer.  É o primeiro sinal de uma vocação que vai lhe definir um dos seus propósitos de vida. Mora em Budapeste, crescendo em meio à estimulante atmosfera cultural do grande Império Austro-Húngaro.   O pai, comerciante de objetos de vidro, louça e porcelana fina, tem condição econômica confortável, consegue prover uma boa educação para a menina, incluindo uma tutora que lhe ensina alemão, uma das línguas de alta cultura na Europa de então.

Quando a família se muda para a cidade industrial de Gyor, a meio caminho na estrada entre Budapeste e Viena, a outra capital pujante do Império, a garota manifesta um segundo sinal precoce de vocação profunda. Desses que telegrafam o rumo provável que uma vida jovem vai tomar, marcando seu destino para todo o sempre. Descobre o artesanato, encanta-se.  Passa a colecionar peças raras. Em pouco tempo o quarto está repleto do que vai reunindo de suas descobertas.

Começa a vida profissional antes dos 20 anos de idade, já mergulhada de vez no mundo das artes e na atmosfera cultural das duas capitais do Império. Trabalha em Viena com a famosa ceramista Vally Wieselthier, pintando peças de seu ateliê. Torna-se ilustradora de um jornal na capital austríaca, de outro em Budapeste. Ilustra as edições alemãs dos livros do renomado escritor francês Émile Zola.

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Foto por Frances RoseLotus

Quando o pai falece, emprega parte da herança estudando belas artes em Dusseldorf, na Alemanha, onde completa sua formação artística clássica. Casa-se, decola de vez a carreira de artista. O marido é escultor e embora o casamento seja malsucedido, dura pouco, no período Olga o acompanha nos seus projetos, participa, desenha e pinta muito.

O divórcio é a consequência inevitável da sua primeira história matrimonial. Quando se casa pela segunda vez, o marido Bela Fisch vai não apenas completar o nome pelo qual Olga se tornará famosa, como lhe abrirá as portas para o mundo além Europa.

Bela é executivo de uma fábrica de cimento ítalo-iugoslava, encarregado de operações internacionais. O casal vai morar por um tempo no Marrocos, onde Olga se rende de vez à cultura popular. Viaja pelo interior do país, começa uma coleção de peças artesanais.

Quando o casal retorna à Hungria em 1934, o clima político já é insuportável em Budapeste. O nazismo em ascensão está tornando a vida impossível para os judeus.  “Entrada proibida para cães e judeus”, dizem os cartazes à porta de estabelecimentos comerciais. Judia, Olga se refugia com o marido em Gyor, onde ainda vivem seus três irmãos, os pais já falecidos. E então Bela recebe uma proposta de trabalho…para o Brasil!

Olga chega ao país voando pelo Graf Zeppelin, o famoso dirigível alemão, escala em Pernambuco e desembarque no Rio de Janeiro. Dura dois anos sua introdução às Américas, período em que pinta muito tipos populares brasileiros e, como de costume, coleciona peças artesanais.

No retorno à Europa, a situação está ainda pior. O casal vai para a Eritréia, no chifre da África, onde enquanto Bela passa um ano no trabalho de executivo, Olga pinta novamente tipos populares, reúne outra coleção de peças artesanais locais. É de então que vem uma frase sua posteriormente registrada por um repórter para a posteridade: “Sempre gostei de gente simples, dessa que chamam de primitiva, disso que chamam subdesenvolvimento”.

O contrato de Bela acaba, o retorno à Europa é dramático. As coleções de arte duramente reunidas do Marrocos e da Eritreia são destruídas na esteira do avanço nazista. Um dos irmãos de Olga desaparece, provavelmente assassinado pelos nazistas. A coleção do Brasil se perde no naufrágio do navio que a transporta para a Europa.

O cerco se fecha sobre o povo judeu. Como muitos que anteveem o futuro sombrio que os aguarda na Europa, Olga e Bela viajam para os Estados Unidos, meca e eldorado, o grande sonho americano da democracia, liberdade e prosperidade como chamariz salvador. A artista até consegue produzir ilustrações para a prestigiada revista Vogue, em Nova York, mas o casal descobre que o sonho esconde um pesadelo. Não consegue o visto de permanência no país.

Os Estados Unidos têm em vigor, então, uma rígida cota de vistos para imigrantes. Nem o aumento da pressão dos refugiados judeus da Europa faz o país mudar a política de imigração, em princípio. É um fato mundial. País após país, na medida em que a diáspora judaica cresce, pressionada pelo nazismo, toma medidas fechando as portas para judeus. Inclusive o Brasil, no período da ditadura de Getúlio Vargas. (Mais sobre esse contexto no meu livro Joseph Davidowicz e a Diáspora, publicado no Clube de Autores).

É então que um amigo convida o casal a se mudar para o Equador, país que então adota uma política volátil, ora plenamente receptiva aos judeus, ora parcialmente restritiva.

O casal se estabelece em Quito, Bela como funcionário de uma vidraria, Olga como professora de uma escola de belas artes. Rapidamente se torna conhecida na comunidade artística local. Vai tomando conhecimento da arte folclórica equatoriana, organizando sua nova coleção de artesanato e se deixando inspirar para gerar sua própria arte. Os motivos locais ganham uma empolgante recriação com os traços modernos da tradição artística que Olga representa.

As primeiras produções que lhe trazem reconhecimento são os tapetes.  Um dia recebe a visita de um diretor do Museu de Arte Moderna de Nova York, que lhe encomenda um desses tapetes,  pagando-lhe 300 dólares.

É o dinheiro que alavanca o sonho de Olga: fundar uma loja que comercialize não apenas sua própria arte, mas a dos artesãos e artistas populares da múltipla tradição artesanal equatoriana, então desprezada, mas para a qual vislumbra um interesse potencial no exterior.

De fato, o negócio cresce, Bela dedicado ao gerenciamento, Olga ao lado propriamente artístico. Viaja por todo o país, pesquisa muito nas comunidades mais distantes, cria laços importantes em Otavalo, associa-se a artistas e artesãos das mais diferentes tradições indígenas, torna-se agente cultural, estimulando-os a produzirem mantendo a fidelidade aos traços originais, mas introduzindo um ou outro elemento que crie conexão com o público externo

Da sua iniciativa de estilista e da sua capacidade de interagir com as hábeis tecelãs da região de Guano nasce, por exemplo, a produção dos seus cinco grandes tapetes que adornam salas do edifício suntuoso da Organização das Nações Unidas, em Nova York. E daí para mais encomendas importantes, no Equador e no exterior.

Na loja, sua fluência como poliglota e a capacidade de transitar tanto pelas culturas do mundo europeu-americano quanto do mundo popular equatoriano ajudam a transformar o local numa atração obrigatória para o público sofisticado estrangeiro que visita Quito.

Quando Bela falece no final da década de 1950, o trabalho de Olga não perde fôlego. Amplia sua influência na sociedade local, ajuda a mudar substancialmente a valorização da arte popular. Em 1962, junta-se a artistas e intelectuais que criam o Instituto Equatoriano do Folclore. O órgão, um braço da Casa da Cultura Equatoriana, uma iniciativa do escritor e político Benjamín Carrion, igualmente ícone da história cultural do país, tem como primeiro diretor, então, um vizinho e amigo de Olga. Paulo de Carvalho Neto.

Sim, brasileiro!

Paulo é diplomata, antropólogo e folclorista que sai do Brasil membro de um programa do governo brasileiro desenhado para estreitar as relações culturais com países sul-americanos. Ajuda a criar centros culturais brasileiros, passa pelo Paraguai. Mas é no Equador que realiza trabalhos que se destacam aos meus olhos, quando pesquiso sua carreira. Estuda a fundo o folclore local, é autor do Dicionário do Folclore Equatoriano, um alentado trabalho erudito com cerca de 500 páginas.

Sua ligação com o Equador é tão grande, vê-se obviamente, que chegou a escrever um romance inspirado na cultura e na vivência do país. Meu Tio Atahualpa foi escrito em espanhol, com o aproveitamento de dialetos da língua indígena quíchua. A sinopse da primeira edição brasileira, pela Rocco, apresenta o tema central como o “conflito entre o mundo branco terceiro-mundista, que mimetiza os hábitos europeus, e o indígena. O autor tece uma divertida crítica aos modos e meios da elite burguesa, criando situações hilariantes. A obra, no entanto, guarda um teor engajado na luta por justiça e igualdade para as populações indígenas.”

Olga falece em dezembro de 1990.

Agora que estou aqui, em novembro de 2017, no espaço que ela criou e onde pulsa seu legado por todas as partes, olho a foto na parede. Já sei muito do factual, das façanhas, do drama, das realizações. Mas me pergunto do ser. Do que aqueles olhos transmitem. Da natureza da presença que habitou aquele corpo agora congelado num instante eterno do tempo. Do que marcou e moveu essa mulher extraordinária, à frente da sua época.

Encontro um perfil assinado por Claudio Malo González. O texto traz-me o que não pude testemunhar, por não ter conhecido Olga em vida.

Ela diz, expressa o autor: “Tenho algo em que posso confiar, são meus olhos que me guiam ao melhor. Entre um monte de coisas sem valor, raras vezes me equivoco ao selecionar algo que vale a pena”.

Sim, as chaves. O olhar.  E a escolha.

”Nasci no primeiro mês do novo século, janeiro de 1901. Este século significa as maiores façanhas da humanidade em tecnologia, ciência e nos mais incríveis inventos de todos os tempos. Mas a maior parte dos inventos criados para a felicidade do homem só servem para seu extermínio. Em questões de moralidade e ética, estamos no mesmo lugar onde estavam Caim e Abel”.

Desconfio existir um traço de amargura nessa vida. Confiro minha hipótese. Engano-me:

“Há tanta beleza, bondade, irmandade, desejo de ajudar, há a incrível variedade de beleza na Natureza. Uma folha, uma mariposa, um bebê terno ou uma montanha majestosa Sim, há tantas manifestações positivas, grandes, belas, que temos que equilibrar o bom com o mau, o negativo com o positivo. E temos que crer no melhor para o nosso presente e para o nosso futuro”.

Sim, nós todos. Passageiros do tempo.

Amém, Olga.  Paz para a sua alma. Honra para a sua memória.

Sim, o belo, a Natureza.

Para lá vamos agora, Olga.  Frances e eu. O verde, as águas vulcânicas, o silêncio, o rio murmurante, os pássaros.

Para Papallacta. Coração das montanhas.

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Olga

Foto por Frances RoseLotus

CONTINUA

 

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