Perfil Premiado

Aqui, a íntegra do perfil do doutor Ronaldo Honorato, médico especialista em transplante no Instituto do Coração do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Matéria de Andréa Ascenção, vencedora do prêmio Clóvis Barbosa da cidade de Manaus, categoria  jornalismo literário.  Foi publicada em Clichetes, outra iniciativa empreendedora de profissionais que fizeram a pós JL, assim como Andréa.

Boa leitura!

Abraços,

Edvaldo

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O HOMEM DA SEGUNDA CHANCE

27/10/2014 at 23:18

Os dilemas do dr. Ronaldo Honorato, o cirurgião cardiovascular que faz a captação de corações para transplantes no Incor (SP)

por Andréa Ascenção

Puxa! Neste dia de chuva, um motoboy bem que podia bater a cabeça, né, Senhor? Que ele não sofra muito. Que o coração dele venha para mim. Mas eu não desejo o mal para ninguém, Senhor. Por que eu estou pensando isso? Afasta de mim esses pensamentos, Senhor. Será que eu estou pecando? Eu estou me afastando de Deus? Não quero que ninguém morra, mas eu estou aqui há quatro meses!

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William está deitado de barriga para cima no leito de uma Unidade de Terapia Intensiva no Instituto do Coração (Incor), em São Paulo. Ele aguarda um coração compatível para ser transplantado. O seu depende de um balão intra-aórtico, um dispositivo que funciona como uma bomba propulsora, ajudando o sangue a chegar até as artérias do coração. Depois de um mês na mesma posição, William fica temporariamente sem o dispositivo e pode sentar-se em um vaso sanitário. Doutor Ronaldo acompanha o caso e sabe que esse momento é um dos mais felizes desse tempo áspero; em outro, William decide oficializar a união com a companheira que vive junto há 17 anos. Ele permanece deitado, enquanto a noiva, em pé, segura a sua mão. Funcionários do hospital enfeitam o quarto com corações de papel e presenteiam o casal com uma geladeira. Nos dias seguintes não resta mais nada a fazer, se não esperar. Em média, um paciente em prioridade na fila de transplantes, como é o caso de William, espera entre dois e quatro meses até aparecer um coração compatível. Esse tempo pode se prolongar por um ano e dois meses, como no caso mais longo que dr. Ronaldo assistiu. O mecânico que se casou na UTI, como ficou conhecido William, aguarda por um coração que pertença ao grupo sanguíneo tipo B. Isso significa que ele faz parte de um dos grupos menos prevalentes. Na população brasileira são 11%. O grupo mais prevalente é o O, com 44%.

Na manhã da última sexta-feira de junho de 2013, enquanto uma jovem limpa as orelhas de Wiliam, dr. Ronaldo entra na sala, cumprimenta-o, recebe de volta um curto aceno com a cabeça e um sorriso. Eles sabem que o coração de William pode parar a qualquer momento. “Pensa bem, você só vai viver se alguém morrer. Você acha honestamente, que no fundo da alma dele ele não está rezando para isso?”, reflete o dr. Ronaldo Honorato Barros dos Santos, o cirurgião cardiovascular que faz a captação de corações para transplantes no Incor.

– Doutor, vai aparecer um doador!

Nas entrelinhas da esperança dos pacientes e familiares, o médico lê: Doutor, alguém vai morrer. Isso significa que a especialidade de dr. Ronaldo envolve situações extremas todos os dias. Mas depender de um potencial doador de órgãos não é a única razão disso.

Houve uma época em que as coisas não faziam sentido para Peter, o filho de Ronaldo, e um dia ele pergunta:

– Só tem você no hospital? Quantos médicos têm no hospital?

Sem perceber aonde o menino de oito anos quer chegar, dr. Ronaldo procura saber porque Peter está lhe perguntando isso.

– Por que toda vez você é chamado? Por que toda vez você tem que ir?

Hoje, aos 22 anos, Peter cursa engenharia petroquímica na Escola Politécnica e entende o que Ronaldo explicara desde cedo. “Chega um ponto na vida, em qualquer profissão, que você é o patrão e trabalha mais que o funcionário. É uma visão socialista mega ultrapassada o funcionário achar que o patrão não trabalha. Às vezes ele trabalha mais do que o próprio funcionário, porque o funcionário tem hora para entrar e para sair. O patrão nunca dorme.”

Ronaldo costuma folgar mais ou menos metade de um dia, uma vez por semana. Com o tempo ele passou a ser uma figura cada vez mais ausente do convívio familiar e da roda de amigos. Nas festas as pessoas costumam se aproximar para conversar sobre medicina. Mas muitas acabam forçando uma espécie de consulta.

– Que bom que você veio…

– Eu primeiro!

– Depois eu, hein?

“Eu não vou fazer plantão de dúvida e nem consultório em festa”. Quando Ronaldo visita sua mãe passa pelo mesmo tipo de problema com os vizinhos. A mãe se preocupa com o que os outros vão pensar. Dr. Ronaldo sabe. “’Pô, o cara é grosso, não custava nada ele falar pra mim, né? Não custava nada ele olhar a receita’. Custa! Custa seis anos de formação na escola médica, custa a especialização, e se é uma coisa que não é da minha área? Custa a vergonha, né? ‘Pô, que médico que você é que não consegue ver uma receita?’ Eu já ouvi essa, inclusive”.

*

 

 

 

 

 

 

 

 

 

RONALDO HONORATO BARROS DOS SANTOS, 45, O “HOMEM DA SEGUNDA CHANCE”. O CIRURGIÃO CARDIOVASCULAR FAZ A CAPTAÇÃO DE CORAÇÕES PARA TRANSPLANTES NO INCOR, EM SÃO PAULO | FOTO: DIVULGAÇÃO INCOR

Peter é filho adotivo do primeiro casamento de Ronaldo. Ele sonha em ter outro e está pronto para levar sua atual namorada à condição de amante. Condição essa que ele faz questão de deixar às claras. “Ela já sabe que eu tenho uma amante. É ruim começar um relacionamento assim, sabendo que você já divide a pessoa com outra. E eu sou casado com a medicina”. São 25 anos de companheirismo. “Quem me deu o que eu tenho, me tornou o que eu sou é a medicina. Ela não vai sair de mim nunca e eu não vou me separar dela jamais. É indivisível.”

O compromisso com a profissão pode se embaralhar na fala. Às vezes a medicina é a esposa, ocasionalmente ela ganha o título de amante. O fato é que ela vem sempre em primeiro lugar. “Mas o custo pessoal é muito grande. Esta semana eu dormi duas noites em casa. Então, é punk. Viver comigo não é fácil, não.”

Em dias normais, as primeiras horas da jornada de dr. Ronaldo podem começar com uma reunião administrativa no Incor e seguir com uma série de visitas aos pacientes. Isso se ninguém o interpelar no meio do caminho.

*

Às 10h da manhã do dia 28 de junho de 2013 a circulação de pessoas no hospital público universitário que faz parte do Hospital das Clínicas de São Paulo, o Incor – especializado em cardiologia, pneumologia e cirurgias cardíaca e torácica – não é mais calma. Do lado de fora, os primeiros raios de sol começam a desmanchar o dia frio e cinzento. Conheço Ronaldo na sala de imprensa, e logo saímos. Dobramos à direita no corredor do andar térreo. Com sapatos marrons de bico arredondado, ele caminha em direção aos elevadores, quando seus passos são interrompidos por uma mulher de baixa estatura, que parece ainda menor dentro de um casaco escuro de moletom excessivamente comprido. Seus cabelos tingidos de loiro-amarelado estão presos. Com os braços cruzados e os olhos fundos de quem passou a noite em claro ela se aproxima e pergunta, apressada:

– A dra. Ludmila passou agora por aqui?

– Acabou de passar, subiu para a UTI. Bom dia, né? Primeiro lugar, como vai? – responde Ronaldo.

O irmão dela, ao lado, vestido de camisa branca e terno escuro, responde meio sem graça:

– Ô, doutor. Bom dia.

A mulher emenda um rápido cumprimento e um pedido de desculpa na pergunta que a atormenta.

– Como está o estado da minha mãe?

Dona Dúrcilia tem 62 anos, mas aparenta muito mais. Ela chegou ao Incor com 90% de risco de ter as batidas de seu coração silenciadas permanentemente. Na última segunda-feira, Dr. Ronaldo interveio no caso no centro cirúrgico. Depois da operação de um aneurisma de aorta torácica, o risco caiu para 50%. Mas para os filhos, compreender a gravidade dessa situação ainda é muito complicado.

– Lembra que fomos francos, conversamos bastante antes da cirurgia? Então, a cirurgia foi uma das etapas do tratamento dela. A doença é tão grave que ela corria risco iminente de morte. Ela superou aquela etapa, mas ainda corre risco de morte.

– Ainda? – surpreende-se a filha.

– Ainda. Por esse motivo que ela permanece na UTI – explica o médico.

A filha continua:

– Ela está em risco de morte com relação à cirurgia ou pelo quadro?

– Pela própria doença dela – responde o médico.

O filho procura saber se entendeu mesmo qual é a doença:

– Morte de órgãos?

– Não existe morte de órgãos. A doença dela chama-se arteriosclerose.

– Simplificando, quer dizer o quê? – pede a filha.

– Degeneração das artérias do corpo – resume dr. Ronaldo.

– Degeneração das artérias? Vai morrendo? – questiona o filho.

– As veias do corpo? – confunde ainda mais a filha.

– Não. É assim: a partir do primeiro dia, que a gente nasce, já começamos a envelhecer. O que a gente consegue perceber é queda de cabelo, perda da capacidade de locomoção, nas pessoas mais idosas há perda da capacidade auditiva. E por dentro a gente também envelhece. A mãe de vocês tem uma doença que todo ser humano tem. Mas as artérias podem envelhecer em maior ou menor velocidade, variando de pessoa para pessoa em função dos fatores de risco, como histórico da família, hábito de fumar, sedentarismo, hipertensão, diabetes. Tudo isso faz com que esse envelhecimento se acelere. Então, na verdade, ela tem uma doença que é no corpo todo, nas artérias do corpo.

– Quantas artérias? – pergunta desatenta e angustiada a filha.

– Todas. Do cérebro até a ponta do dedo ela tem essas artérias comprometidas.

Ronaldo detém-se no corredor pelos 18 minutos seguintes. A certa altura ele apoia ligeiramente o ombro direito na parede e explica nos termos mais simples que a doença de dona Durcília chegou a um ponto tão avançado, que rompeu a artéria do tórax, comprometendo todo o sistema arterial, ou seja, a distribuição de sangue dentro do corpo.

A paciente é obesa, hipertensa e fumante. “Tudo o que se pode fazer de errado ela fez e aí paga um preço por isso. Eu costumo dizer que a saúde é como uma poupança que a gente faz ao longo da vida. Embora o brasileiro não tenha a mentalidade de poupar, na saúde é fácil entender o conceito. Se você faz poupança: pratica um pouco de atividade física, procura estabelecer um peso ideal, cuidar das alterações que ocorrem durante o envelhecimento, que é normal, quando você tiver 70, 80 anos e precisar usar a poupança, você vai ter muito dinheiro para sacar”. De repente, dona Durcília precisou usar a poupança, mas ela tinha pouco a resgatar. O banco lhe ajudou com um empréstimo, que foi a cirurgia. A intervenção corrigiu o sangramento na região do tórax, mas não curou as outras artérias, por isso, a paciente desenvolveu insuficiência renal.

– Pode ser que ela necessite fazer diálise, inclusive – adverte dr. Ronaldo.

– Desculpa perguntar: precisa transferir para outro hospital? – consulta o filho.

– Não acho que seja necessário – opina o cirurgião, que conhece diversas situações de famílias que perderam suas casas tentando custear um tratamento como esse, pois as despesas hospitalares chegam facilmente a 200, 300 mil reais.

– A gente estava pensando em transferi-la para o Hospital Sírio-Libanês – revela o filho.

– Vocês vão gastar uma fortuna lá. Não vão conseguir manter na UTI, é muito caro. A gente aqui tem toda a condição de cuidar. Só vai mudar a hotelaria.

– Eu entendi. Só mais uma pergunta, não vou mais tomar o tempo do senhor. O fator de vida. O senhor acha que ela ainda está correndo risco?

– Muito! Ele já falou, meu irmão, o risco é grande!

– Posso ser pragmático? Prático? Enquanto estiver dentro da UTI significa que ela corre risco de morte.

– Está ok – desilude-se o filho. A filha retoma:

– Quantos por cento?

– Ainda está nos 50%.

Os irmãos fazem mais algumas perguntas, anotam o nome completo do cirurgião e querem saber onde podem encontrá-lo para entregar um presente.

– Faz o seguinte, doa para a ACTC (Associação de Assistência à Criança e ao Adolescente Cardíacos e aos Transplantados do Coração). A gente constantemente necessita, acolhemos inclusive as mães.

Os irmãos agradecem e comprometem-se a fazer a doação em nome do médico.

– A dra. Ludmila é um docinho, o senhor também, eu não conhecia o senhor. O máximo que eu posso desejar é que Deus abençoe o senhor, o Espírito Santo de Deus abençoe o senhor, os mestres espirituais abençoem o senhor.

– Muito obrigado, para que eu continue ajudando as pessoas.

Antes de se despedir, a filha desarma a expressão facial e lhe escapa um leve sorriso. Ela conta que quando vê dra. Ludmila, cardiologista que trata de sua mãe, passar pelo corredor, sai correndo atrás.

– Ela já está acostumada. Doutor, o senhor se acostuma comigo. Eu sou impertinente. Tchau.

– Está certa, é sua mãe. Tchau.

Dr. Ronaldo volta a esperar o elevador. Eu perdi um tempão crucial, mas eu precisava falar com essa família. Eles não têm compreensão da doença. Mesmo com o Sistema Único de Saúde (SUS) abraçando unidades de altíssima complexidade para a realização de transplantes, a quantidade de doentes é muito superior à capacidade que ele consegue absorver. Dos cerca de 6,5 milhões de pacientes portadores de insuficiência cardíaca no Brasil, o DATASUS (departamento de informática do SUS) estima que hoje em dia aproximadamente 1/3 é hospitalizado. Em um ano, 10% dos pacientes que não conseguem tratamento morrem. Dos casos mais graves que são internados, ou seja, das pessoas impossibilitadas de realizar qualquer atividade física, e que às vezes, mesmo em repouso, sentem desconfortos, entre 30 e 40% também morrem. Os filhos de dona Durcília ainda não sabem, mas os próximos exames estão prestes a designá-la para mais um grupo de 50%. Metade dos pacientes que se recuperam na UTI do pós-operatório e que evoluem para a necessidade de fazer diálise, não sobrevive.

Os estudos, registros e cruzamento de dados a cerca do tema ainda são minguados. No levantamento, feito em 2000, pelo DATASUS, percebeu-se que o número aproximado de internações realizadas por insuficiência cardíaca era de 39.800. Dessas, 26 mil pessoas não saíram dos hospitais com vida, mais de 65%. Nesse cenário, os que precisam e conseguem ser indicados para entrar na fila de transplantes já podem se considerar sobreviventes, como William. Mas o recém-casado quer mesmo é fazer parte dos cerca de 200 transplantados por ano no Brasil. Um número que dr. Ronaldo quer fazer crescer, e muito. Até agosto de 2013, apenas no Incor, ele realizou 13 transplantes de coração – como cirurgião cardiovascular ele também trabalha no Hospital das Clínicas e no Hospital Beneficência Portuguesa; já no Hospital Nove de Julho ele atua como intensivista cardiovascular. Em todo o Estado de São Paulo, nesse mesmo período foram feitos 65 transplantes de coração. No mundo, segundo o balanço da International Society for Heart & Lung Transplantation (ISHLT), divulgado em 2012, entre janeiro de 2006 e junho de 2011, 104 centros fizeram entre 10 e 19 transplantes por ano. Hoje, o Incor se enquadra nesse grupo. A meta de Ronaldo é entrar no grupo que realiza entre 40 e 49 transplantes por ano que, atualmente, tem quatro centros. “Eu sou muito novo para ocupar esses cargos na medicina, na instituição que eu estou [Incor] tem professores muito mais titulados do que eu”, diz ele aos 45 anos. “Eu sou só uma pessoa que faz. Não sou sumidade, mas eu vou virar. Porque vou me gabaritar, vou fazer as coisas todas certinhas. Então, nesse momento, essas posições estão ocupadas. Mas a minha hora vai chegar. Tenho certeza, especialmente porque ninguém faz o que eu faço durante muito tempo. As pessoas não aguentam. As famílias se desestruturam. Os médicos cansam.”

Ele se lembra de cenas típicas do passado, inacabadas e que podem se repetir a qualquer momento. Dentro do carro a mulher que foi ao cabeleireiro, fez as unhas, a maquiagem, vestiu-se para a festa e tem certeza de que irá se divertir, quando chega na porta do casório, de repente ouve do marido: “vamos ter que ir embora”.

– Ah, o transplante espera…

– Desculpa. Você quer ficar sozinha?

– Sozinha eu não vou ficar, pô!

“É bonito no começo, mas o dia a dia é muito trabalhoso. ‘Ah, doutor, o que você faz é nobre, você tem um lugar garantido no céu.’ Eu dediquei os melhores anos da minha vida e o valor que se paga no nosso país é muito ruim, pouquíssimo, pelo que a gente faz e um terço desse valor incide em imposto de renda. E o meu futuro lá na aposentadoria? O que eu amealhei do passado? Nem o residente de cirurgia quer fazer o que a gente faz porque são doentes de altíssima complexidade, de alta mortalidade, num sistema caótico.” Ronaldo se antecede: “Aí você vai falar, mas é muito lindo isso que você faz”, e escancara a ironia da vida de um médico. “É lindo! Senhor Abílio Diniz*, o senhor dá licença, eu faço uma coisa linda, posso levar um quilo de carne porque hoje eu não tenho dinheiro para comprar?”

(*Abílio Diniz: empresário que comandou o Grupo Pão de Açúcar, fundado por seu pai, por mais de 50 anos. No dia 6 de setembro de 2013 deixou o grupo, passando a presidir o conselho da BRF, uma das maiores companhias de alimentos do mundo)

*

No Norte e Nordeste do País os problemas cardíacos vêm se agravando nos últimos anos. Pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Saúde da PUC do Paraná analisaram pacientes entre 2000 e 2010 e descobriram aumento de 34% de mortalidade por doença cardíaca. Eles atribuíram a causa ao crescimento da renda dos habitantes dessas regiões.

Em março de 2013, o Programa Bolsa Família e o Plano Brasil sem Miséria tiraram da margem da extrema pobreza mais de 22 milhões de brasileiros. Mas deixar de morrer de fome não impede que essas pessoas morram em decorrência de uma alimentação de qualidade questionável. Uma vez que a população mais carente passa a ter dinheiro para consumir alimentos industrializados, hipercalóricos e ricos em sódio, problemas cardíacos e outros aumentam significativamente. Enquanto isso, no sul e sudeste do Brasil o índice de mortalidade por doenças cardíacas caiu até 25%. Tudo isso faz dr. Ronaldo refletir ampla e profundamente. “Como a Coreia do Sul conseguiu vencer? Ela investiu tantos por cento do PIB na educação, e hoje a Coreia é uma potência. Então, a educação de qualidade faz você ter o quê? Uma pessoa instruída o suficiente para saber que ela não pode ficar gorda. Porque, além dela ficar feia, ela vai ficar doente. Um sistema de pessoas bem educadas proporciona a cada uma delas entender que o tabagismo faz mal, que é importante controlar a pressão, se não a pessoa pode sofrer um infarto, um derrame e uma série de consequências.”

“Tem gente que vem da Bahia de ônibus! Desembarca aqui na porta do pronto-socorro. O médico fala: ‘Pega tuas coisas e vai pra São Paulo porque aqui a gente não tem como resolver.’ Aí o doente vem de ônibus, chega cansado. Puf! A gente transplanta o cara. Nem um, nem dois, nem três, são vários”, sinaliza Ronaldo. Enquanto isso, o governo brasileiro propõe Mais Médicos. Esse é um programa que contrata médicos estrangeiros, que aceitam um salário abaixo das expectativas dos mesmos tipos de profissionais no Brasil, para trabalhar nas cidades mais afastadas do centro ou na periferia das cidades grandes, onde muitas vezes não existem as mínimas condições de atendimento aos pacientes ou uma estrutura para o profissional da saúde se fixar com sua família e desenvolver um plano de carreira. Sem revalidação do diploma sob o pretexto de que se trata de uma medida provisória para atender a urgente carência da população, os doutores que desembarcam no Brasil passaram por três semanas de treinamento a respeito da língua portuguesa e do funcionamento do SUS. É o suficiente julga o Ministério da Saúde. É uma medida eleitoreira, irresponsável e desrespeitosa opõe-se o Conselho Federal de Medicina.

“Vi numa reportagem outro dia que o posto de saúde não tinha nem mesa para o paciente ser examinado. Você acha que isso é justo com o paciente e com o profissional? Você acha que isso é jeito de trabalhar?”, questiona dr. Ronaldo, que agora também depende dos profissionais do programa Mais Médicos para realizar transplantes de coração, pois a porta de entrada de doadores é o sistema público de saúde. “O médico que está lá é tão vítima quanto o próprio paciente”, enxerga o cirurgião.

Um momento antes ele saíra da sala por alguns minutos para discutir o agravamento do quadro de uma paciente de 20 anos na lista de espera para o transplante. Na volta, comenta:

“Você acha que eu não gostaria de colocar um coração artificial na menina? Eu tenho a expertise, sei fazer e falta o mais importante que é o equipamento. Como eu vou fazer? Você acha que vou pra casa feliz? Vou chegar em casa agora e ficar na boa, na paz, como se nada tivesse acontecido?”.

Para lidar com as pressões que a iminência da morte dos pacientes, incluindo o seu fim, fazem em sua cabeça dr. Ronaldo desenvolveu um mecanismo de defesa: “Não fui eu que coloquei a doença no paciente. Se eu me culpar, não faço mais nada do que eu faço. Por mais conhecimento que você tenha, por maior que seja o número de transplantes acumulados nas costas – já se vão quase 300 –, você continua sendo um nada. E você tem que continuar estudando, aprendendo, treinando para ser um pouquinho.”

*

No quarto andar do Incor, quando a porta do elevador se abre, dr. Ronaldo avança por um corredor com paredes cor de rosa em tom pastel. Ele cruza com parte da equipe de transplante pulmonar: dr. Luis, dr. Lucas e o instrumentador Carlos. Aqui o acesso é restrito e predominam os que vestem jaleco branco. A porta do pós-operatório cirúrgico da UTI abre automaticamente ao toque do cirurgião. Ele visita os pacientes, com menos frequência do que gostaria. A sala, apesar de silenciosa, comporta certa circulação de médicos e enfermeiros a qualquer hora do dia ou da noite, que discutem condutas com a equipe, checam os exames, os drenos, as incisões e o que mais for preciso.

No pós-operatório há cinco leitos enfileirados e mais dois isolados no fundo. As camas são altas, não parecem ter menos de 60 cm. Todas mantêm os pacientes com a cabeça bem elevada, quase sentados. Nos pés de cada cama diversos aparelhos estão conectados a fios e tubos que saem do nariz, da boca, do peito e, às vezes, do pescoço ou do braço dos pacientes, seja para auxiliar a respiração, receber medicamentos e monitorar a frequência cardíaca ou escoar secreções comuns após o procedimento cirúrgico. A parafernália é grande, tem alto custo de funcionamento e desenha uma ilha dentro do sistema público de saúde. “Isso aqui é uma exceção. Não é a realidade brasileira do posto de saúde. Eles não conseguem resolver isso lá, eles não têm essa alta complexidade”, confirma Ronaldo, que chega brincando com o primeiro paciente, ainda entubado. Os movimentos lentos e limitados de Adalberto, transplantado na terça-feira (25 de junho de 2013), são suficientes para demonstrar que ele está consciente sobre seu novo coração.

– Bom dia! Está se sentindo bem? Está sentindo bater muito forte, quer que eu tire? Não? Se quiser corto metade dele, não quer?

Aparentemente está tudo bem com Adalberto. Ele fará um controle ecocardiográfico para que os médicos tenham certeza sobre a estabilidade da função do coração. “Mas pelos exames e por tudo o que a gente está vendo aqui, está tudo direitinho, bem tranquilo”.

Do outro lado da sala aparece um dos cardiologistas da equipe clínica. Dr. Luís está “passando visita” acompanhado de residentes. Ele faz isso ao menos duas vezes por dia para cada internado. É ele também que recebe o paciente no consultório, pede exames, analisa o caso e, se preciso, indica o procedimento cirúrgico, que então é feito por Ronaldo. “Nessa fase a gente interage junto porque existem fatores comuns; por exemplo, ele vê a parte medicamentosa, discutimos o caso. E, depois que o paciente tiver alta hospitalar, o seguimento tardio é feito com a equipe clínica. Então eles ajustam a medicação imunossupressora, acompanham a evolução clínica em longo prazo dos pacientes transplantados e se precisar fazer biópsia, eles chamam a gente”.

– Passamos em todos já. Aqui achamos que só um tem infecção – comenta dr. Luís.

– Eu também acho. Ontem eu drenei 150 ml. Falei para o [Fernando] Bacal, e era citrino. Não me convenceu que ele estava tamponado, não, sabe, Luis? Não me convenceu mesmo.

– No fim, acho que é infecção. Três meses de internação. Era o risco que a gente corria mesmo – pondera dr. Luís, que, em seguida se apressa em sair para ir até o pronto-socorro.

Depois de 48 horas de internação em um hospital, o paciente adquire a flora nosocomial. Dentro de uma UTI, onde os germes são altamente resistentes, o risco de infecção aumenta. E para os pacientes transplantados o risco é muito maior, pois eles precisam de uma dose alta e certeira de imunossupressores. A droga inibe a rejeição ao novo órgão, mas baixa a resistência do paciente, desarmando seu sistema imunológico e expondo-o a infecção. Por isso, o controle de imunossupressores é um desafio.

Além de Adalberto, outro paciente transplantado um dia antes (27 de junho de 2013) preocupa os médicos. José Inácio chegou ao Incor no dia 5 de março de 2013, desnutrido, o que fez do avanço de sua doença cardíaca um carrasco incansável. “É um doente que tem uma mortalidade elevada, ele retorna várias vezes no consultório, no ambulatório. Ele tem descompensações frequentes. Então, o doente vai levando, vai levando, vai levando até que chega uma hora que ele aparece aqui no nosso pronto-socorro num estado terminal.”

Esse é o pior cenário possível para realizar um transplante e é também o mais frequente. José Inácio não tem mais uma reserva orgânica para resgatar na recuperação da cirurgia. O procedimento é altamente agressivo. “A gente não troca peça de carro. A gente trata pessoas. Eu não substituo coração, eu opero pessoas que têm cabeça, cérebro, pulmão, rins, intestinos, medos, angústias, sofrimentos”, compara Ronaldo. “Às vezes a gente faz tudo perfeito, o coração fica excelentemente transplantado e o paciente não supera, porque não existe cirurgia de maior complexidade do que transplantar um órgão. A pessoa está consumida e você precisa substituir aquele órgão. Mas não é oficina mecânica, em que você troca um pneu e o carro sai andando direitinho. Aqui existem alterações metabólicas, o organismo vai sofrendo ao longo dos anos e isso afeta o resultado do transplante.”

José Inácio ficou em prioridade por mais de três meses até ser transplantado. No dia 8 de agosto de 2013 quando reencontro dr. Ronaldo, ele digita o número de matrícula de José Inácio na intranet do Incor. Nas páginas seguintes ele preenche datas, tempo de isquemia, se era paciente do SUS ou se tinha convênio, nome dos medicamentos ministrados, se houve ou não perda do enxerto e a evolução do paciente. Óbito: sim, falecimento dos órgãos. José Inácio morreu no dia 2 de agosto. Ronaldo tem até 15 dias para fazer a notificação. Se a página carregar rápido não leva mais do que dois minutos. A intranet interliga todos os dados à base do Sistema Nacional de Transplantes. O nome completo de José Inácio, assim como de outros pacientes dos quais o médico cuidou, estão gravados em sua memória. Eles veem à tona tão rápido quanto se pode acender um isqueiro. A partir de agora, José Inácio também se torna um número que, analisado junto a outras centenas, poucos milhares em termos globais, ajudará dr. Ronaldo e outros médicos a tomarem decisões, para que, quem sabe, no futuro outras notificações não apareçam em vermelho, mas em outra cor: verde, de vivo.

*

No Brasil, a distribuição de órgãos é feita nacionalmente pelas Centrais de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos (CNCDO). São 24 centrais estaduais. Apenas a Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo, que fica a poucos metros do Incor, preferiu delegar as tarefas relativas à captação de órgãos a dez hospitais públicos universitários, que formam o Serviço de Procura de Órgãos de Transplante (SPOT). Antes Ronaldo intermediava diretamente toda a comunicação com os SPOTs, mas, desde agosto deste ano, o Incor montou uma equipe de enfermeiros para essa tarefa, que fica alerta ininterruptamente. Quando o telefone toca para a oferta de um doador, os primeiros dados são coletados, depois discutidos com a equipe clínica, que, junto com Ronaldo, decide se convém ir adiante ou não. Isso trouxe um pouco de tranquilidade para o médico. “É muito cansativo ficar todos os dias à disposição. Você fica na neurose de se o telefone vai tocar.” Esse upgrade tirou Ronaldo da linha de frente, e hoje ele consegue se programar para ir ao cinema ou viajar. No cinema, ele não opera ninguém, nem por isso o sangue deixa de jorrar. Mas é sangue fake e violento dos filmes de Quentin Tarantino, linha cinematográfica que ele gosta bastante de assistir. Dos lançamentos lhe chamou a atenção Guerra Mundial Z. Mas se o celular tocar no escuro, os zumbis terão que esperar para contaminar a humanidade. Ronaldo não se separa dos celulares. Antes eram três. Hoje em dia ele carrega um de uso pessoal – “Não esquenta que é assim mesmo. Toda hora vai tocar, vai ligar. Isso porque esse outro está quieto”, conta, colocando a mão sobre o bolso do jaleco. Esse “outro” é exclusivo para orquestrar a captação de corações.

Muitas vezes o médico ouve de sua mesa de trabalho a interação entre os enfermeiros e os SPOTs. Os dados vão sendo checados: idade, se era etilista, tabagista ou consumidor de outras drogas, se tinha alguma doença, como hipertensão, e se a tratava ou não. Se há manutenção do doente após a morte cerebral para mantê-lo bem hidratado, regulando a pressão, a função renal e outras, Ronaldo já sabe se estão oferecendo um bom ou mau doador. Este último, também chamado de limítrofe, sempre pode desencadear as mais profundas discussões, divergências e divisões na equipe. É comum a equipe clinica que tem contato diário com cada paciente na fila de transplante ficar mais envolvida e vulnerável a decisões emocionais. Enquanto isso, dr. Ronaldo – que há 17 anos conhece de uma ponta a outra o processo do transplante, incluindo a legislação e a prática do sucesso e do fracasso, que significa invariavelmente a morte do paciente – aprendeu a racionalizar suas decisões a fim de ajudar a salvar o maior número possível de vidas. O desejo é legítimo de ambos os lados, que são formados por seres humanos, portanto, passíveis de erros.

“A gente tem que fazer outras reuniões e tem que amadurecer os nossos conceitos. O bom médico não é o que não erra, o bom médico é o que erra menos. A gente erra frequentemente. Só que com o conhecimento científico, a gente erra menos. E o mais louco de tudo é que às vezes um paciente que a gente acha que vai morrer acaba surpreendendo e sobrevivendo. Mas são casos esporádicos. Então a gente se baseia em registros internacionais, nacionais, experiência da instituição, experiência pessoal e discussão que é constante para isso tudo”, revela Ronaldo.

Mesmo quando um doador parece ser efetivo (aquele que tem ao menos um órgão sólido retirado para transplante), nada impede que no momento em que Ronaldo abre o peito do doador ele constate algum problema que inviabilize o transplante do órgão. Nesse caso, o receptor, que está sendo preparado no centro cirúrgico para a retirada do coração doente, tem suas chances de sobreviver reduzidas drasticamente. Isso porque o transplante de coração exige uma administração precisa do tempo. São duas cirurgias acontecendo paralelamente. Enquanto dr. Ronaldo corre para buscar o novo coração, outro cirurgião retira o coração doente do paciente e o prepara para o transplante, mantendo-o vivo através de um sistema de circulação extracorpórea, uma máquina que faz as vezes do coração e do pulmão. Se o coração estiver em condições viáveis, Ronaldo o retira ainda batendo, vermelho vivo e imediatamente o coloca em um saco transparente apropriado, com soluções protetoras, resfriando-o a 4 graus Celsius. Depois de bem embalado e lacrado, ele coloca o músculo que mais trabalha no corpo humano em uma caixa térmica com alça para ser carregada até o Incor. O tempo de isquemia já está correndo; veloz, ele dispara mais impiedoso do que o tempo de qualquer outro órgão. As próximas quatro horas são as mais preciosas: elas contam o quanto um coração aguenta ficar fora do corpo, sem sangue, murcho, gelado, rosa pálido e ainda viável. Quando chega ao Incor, Ronaldo aquece o coração e prepara-o para que as suas 50 milhões de células musculares elásticas voltem a se contrair juntas, dentro do tórax de outra pessoa. E aí suscita a dúvida: onde é a vida? A vida é a nível celular? Ou a vida é do jeito que a gente conhece? Onde é a vida? Concorda que, se a célula não estivesse viva, o órgão não bateria? Se não houvesse a menor reserva energética dentro da célula, se a célula não fosse viável, como é que ele ia bater quando eu o aqueço? A pessoa morreu, né?

Se o transplante for realizado após 300 minutos da captação, o risco de mortalidade do paciente aumenta exponencialmente. A menor fração de tempo presente dita o futuro próximo; no entanto, há mais fatores a serem considerados e analisados. Dependendo do estado de saúde do receptor, o doador pode se tornar pouquíssimo viável, isso quando existe um doador.

Se o doador existe, no momento em que começam as primeiras movimentações para captar ou não o órgão, Ronaldo sente como se holofotes se virassem para ele. “Teoricamente todo médico tem o dom da vida na mão. Mas eu tenho ainda mais, porque sou eu que tiro o coração lá e eu que trago o coração para cá. Eu sou tido como o mensageiro, o portador da vida. Tem essa aura mítica que cerca a gente. E não é nada disso. Eu não me julgo melhor do que ninguém. O que eu faço é um processo técnico, que coincidentemente tira de um e põe no outro. Então, eu não sou um herói. Se tiver um herói nessa história é o doador e o transplante não acontece se a família não tiver o desprendimento necessário para autorizar a doação”. O cirurgião sabe a imagem exata que os pacientes, os colegas de trabalho e a mídia reproduzem dele. Dr. Ronaldo é costumeiramente estereotipado, o personagem nobre que fascina o telespectador, o leitor, o ouvinte.

Mas ele é real, e nos bastidores da sua vida há inveja e consequências para tamanha exposição. Fato: a divulgação de seu trabalho é, comprovadamente, uma forma de esclarecer à população o quanto é importante e necessária a doação de órgãos. As notícias que têm grande repercussão fazem aumentar o número de familiares que permitem e assinam, ainda que seja com a impressão digital, a declaração de doação de órgãos. Na Espanha, o país que tem mais doadores de órgãos, as crianças aprendem isso de forma lúdica, nas escolas. Elas brincam de carregar o coração, o fígado, os rins e de dar para o amiguinho que precisa. Doar os órgãos após a morte é um processo natural. No Brasil, a recusa ainda é grande e dificulta muito propiciar uma segunda chance para William, dona Durcília, José Inácio e tantos outros que estiveram, estão, entrarão ou não na fila de transplantes. Por isso, Ronaldo continua mantendo um relacionamento com a imprensa, mas hoje em dia com o máximo de cautela possível.

Em 2010, sua exposição na mídia sobressalente à de seu então superior provocou seu afastamento do Núcleo de Transplantes. Foi-lhe negado o exercício de seu dom. Nasceu uma ferida em seu coração, alma ou o que quer que se entenda por essência da vida. O tempo a curou, mas não o livrou de uma cicatriz. Cicatriz que ele sente arder a cada tomada de decisão em situações extremas, o que é frequente.

O médico tem uma fonte de força e equilíbrio que se torna evidente quando lhe peço para escolher algumas fotos históricas e significativas para sua vida. A imagem captada é da criança, “meio sanguinária”, que já havia escolhido a medicina. O menino Ronaldo está rodeado por seus familiares. Vespúcio, seu pai, é o mais novo dos seis irmãos, “tido como o ‘patinho feio’ da família”. Todos os seus tios enriqueceram enquanto ele era criança. Consequentemente, seus primos tiveram dinheiro, carros, apartamentos luxuosos e outras grandes oportunidades na vida. Enquanto isso, Ronaldo, sua irmã mais nova e os pais comiam pão com carne moída. “Era o almoço, o jantar e o café da manhã. E olhe lá de ter a carne moída. Minha mãe comprava pimentão para dar um colorido no negócio. Pimentão era barato, hoje em dia é uma fortuna”, recorda o médico, que reproduz um discurso do passado de seu pai:

– Seu filho vai fazer medicina? Medicina é coisa de rico, você é pobre. Põe na cabeça, de uma vez por todas, que você é pobre. Você nasceu pobre, está pobre e vai morrer pobre. Para! Fica enganando o menino…

Com o passar dos anos, quase todos os seus tios e primos se desestruturaram de alguma forma, perderam dinheiro, saúde e status. Já seu pai, “o patinho feio, virou o cisne branco. E eu estudei na PUC, uma escola paga, pois a gente perseverou”.

Aos 40 anos, sua mãe, Sueli, que nunca havia trabalhado na vida, por impedimento do marido, decidiu começar, vendendo produtos de cosmética e chegou ao cargo de diretora na Avon. Atualmente, está aposentada. Vespúcio chegou a ganhar muito dinheiro na juventude, foi uma das primeiras pessoas a fazer propaganda e marketing no Brasil. Quando as multinacionais chegaram, ele perdeu tudo e teve que recomeçar a estudar. Tornou-se advogado e trabalha até hoje, aos 78 anos. “Meus pais me desafiam a vencer. Eles tiveram tantas superações na vida, que eu não posso ser um cara frouxo. Eu que estudei num colégio de primeira linha, tive tudo na vida, tenho saúde perfeita, uma família que me estrutura, tenho casa própria, não posso ser fraco, se não, não ajudou nada eles terem sofrido na vida.”

Quando criança, Ronaldo frequentara a casa de um de seus tios. Na sala de jantar, uma mesa de mogno, com 12 lugares reunia os convidados. Eram muitos os que frequentavam a casa. Anos mais tarde, no enterro desse tio, oito pessoas prestaram suas condolências. “Nem os filhos foram. Para mim, isso tem bastante significado, porque mostra uma evolução da minha origem”. Ronaldo é o único médico de sua família.

Mas amadurecer leva tempo. Quando Ronaldo começou na medicina, acreditava estar vestindo um “manto sagrado”. “Você acha que está acima de tudo e de todos.” Ao chegar em um hospital para captar um coração, ele se deparava com o sistema de saúde precário que a maioria dos brasileiros conhecem e disparava sua indignação contra o médico que encontrasse pela frente.

– Que absurdo! Não tem isso, não tem aquilo. Pô, por que você não fez isso?

“Eu fui para Bauru, gastei R$ 30 mil do Sistema de Saúde da Secretaria e não consegui usar o doador, porque eles me mandaram num hospital que estava com intervenção. Não tinha as mínimas condições de realizar uma cirurgia.” É comum também Ronaldo recusar enxertos por causa da falta de cuidados com o doador. “Como que uma pessoa que está cuidando de 15 leitos vai cuidar de um doador para que o doador vire um transplante? Se eu chego com o pé na porta, mandando, exigindo, o médico da UTI vai olhar pra mim, vai me medir, e vai falar: ‘Como você é soberbo, né?’ Eu trabalho num hospital que me remunera mal, falta um monte de coisa e você acha que é o quê? Só porque você faz transplantes, aparece na mídia, você acha que tem o direito de vir aqui e me encher o saco?’ O cara não vai fazer o que eu quero porque a realidade dele é outra. Eu aqui brigo para ter antibiótico de quinta geração, lá ele briga para ter antibiótico básico. Aqui eu brigo para ter dispositivo de coração artificial que custa 150 mil, ele briga para ter um funcionário que custa 3 mil. Então, essa ponta do processo é muito desigual. E ainda por cima a besta aqui que aparece na televisão, dá entrevista, não é ele que ficou a noite inteira cuidando do doente.”

“Eu demorei muito tempo para aprender que tenho que conquistá-lo”. Foi então que Ronaldo amadureceu seus conceitos e criou as “gotinhas de conhecimento”.

– Você colheu tal exame?

– Não, não colhi.

– Sabe por que é importante tal exame? É porque ali na frente vai dar problema, aqui, ali…

É como se o profissional que muitas vezes cuida sozinho de uma dezena de pacientes graves ganhasse uma mini-aula. “Dou uma gota de conhecimento para ele. Ele vai se sentir prestigiado, respeitado, e aquele dia não passou em branco.”

*

Na antiga sala do Incor, com piso de granito e ar condicionado, que Ronaldo dividia com mais um médico, ele costumava colocar o jaleco em um cabide e pendurá-lo atrás da porta antes de se sentar. Quando o reencontro, ele havia mudado para outra sala, com o mesmo piso e climatização. Nesse dia, seus cabelos castanhos, com discretos fios brancos, ainda curtos, o incomodam, mas ele não conseguiu tempo para cortá-los. Às vezes ele os penteia com a mão, puxando a parte da frente para o lado. Ele aparece vestindo calça jeans e camisa com listras fininhas, em tons de verde. Sua pele clara transparece as veias em seus braços. No punho esquerdo um Omega prata é o mais próximo de um adorno. Nos pés, sapatos pretos, com bicos arredondados, parecem confortáveis. O jaleco ele tirou quando derramaram café sobre ele mais cedo. Não tinha mais nenhuma visita à paciente programada para aquele dia. Ele senta-se à mesa e utiliza o computador para acessar o site do Sistema Estadual de Transplantes (SES).

O objeto mais pessoal que se pode ver em seu ambiente de trabalho é o celular, que, tão logo ele chega, coloca para carregar, ligando ao computador um adaptador. Espalhadas pela mesa estão algumas pequenas pilhas de envelopes pardos, contendo as fichas de diversos doadores; algumas têm a marca de sua letra na primeira página: “descartado”. Alguns papéis brancos permeiam as pilhas, e tem mais deles em uma caixa de papelão embaixo da mesa, na frente de uma caixa azul, daquelas utilizadas para acolher e transportar o coração. Há também um telefone preto com fio e três calendários. Um do Serviço Aerotático da Polícia Civil, com fotos de helicópteros, outro com fotos de paisagens e um terceiro, da ACTC, com o desenho de um homem com cauda de peixe abraçando uma mulher no fundo do mar. Nomeado “Rios da minha Terra”, a obra colorida parece ser pintura surrealista de uma das crianças atendidas pela Associação.

O SES conclui a pesquisa de janeiro ao início de agosto de 2013. O resultado aparece no monitor, que se ajusta à altura de seus olhos, elevado pelo volume de quatro livros intitulados “The Annals of Thoracic Surgery”, um de dezembro de 2006 e outros três de janeiro, abril e setembro de 2007. De acordo com o registro da SES, os SPOTs notificaram 1.668 mortes cerebrais, mas 36,1% não viraram ofertas para transplantes por recusa familiar. Outros 2,9% foram descartados por terem AIDS, hepatite ou alguma outra doença detectada pelo exame de sorologia. 13,7% também saíram da contagem por terem sofrido parada cardiorrespiratória, e outros filtros excluíram mais 26%. Restaram então 504 doadores de coração. Desses, 65 foram transplantados. Na última etapa, o número continua caindo devido às más condições em que o doador é mantido ou por causa da longa distância até o hospital, que inviabiliza a captação do órgão.

Soma-se a isso o fato de o transplantado precisar usar o banco de sangue, que está sempre precisando de doações, e o alto custo do transplante, que envolve a locomoção para captação do órgão. É comum o uso de helicóptero, preferencialmente, da Polícia Civil ou Militar. Há casos em que as companhias aéreas também oferecem o voo, mas, esgotando essas alternativas, o custo cai na conta do hospital, assim como as despesas com os profissionais que tratarão do paciente, os equipamentos, o tratamento pós-cirúrgico, a internação e o limite financeiro da administração da instituição.

Tudo isso passa pela cabeça de dr. Ronaldo quando os SPOTs telefonam. Ele calcula os riscos. Isso significa que ele é seletivo, o sistema de transplantes no Brasil o empurra para esse critério. “A gente não tem coração para todo mundo. Infelizmente a gente tem que selecionar os melhores doadores para ter uma chance. Tem uma série de riscos que o paciente passa e a gente tem que saber todos até para contra indicar um procedimento quando não tiver mais o que fazer.”

Certa vez, a captação de um coração em Pindamonhangaba, cidade que fica no interior do Estado de São Paulo, exige uma perigosa viagem. Dr. Ronaldo entra no helicóptero sem saber se o piloto conseguirá voar por cerca de 136 km. O som das hélices se misturam ao da chuva, e a neblina impede qualquer visão pelos 45 minutos seguintes. Mas enquanto o cirurgião tiver um bom doador à disposição, ele arriscará a própria vida, assim como o piloto e um ou dois médicos que possam estar na missão. “Eu continuo fazendo a mesma coisa que eu fazia um tempo atrás. Tudo bem, com um padrão de qualidade excepcional, mas é uma imbecilidade fazer um voo cego. Muitas equipes de transplante no Brasil não fazem.”

Em outras situações, ao analisar o doador ofertado e o estado do paciente, que pode estar a um sopro da morte, se todas as evidências mostrarem que a chance daquele enxerto dar certo é ínfima, a decisão de Ronaldo não faz curvas. “Eu não faria”, chega aos ouvidos da equipe médica, sem resvalar em nada. “Nesse cenário, se o transplante acontece, sabe o que nós fazemos? Nós matamos uma pessoa e jogamos o enxerto no lixo.”

Constantemente, os cantos internos das sobrancelhas de Ronaldo se elevam e se aproximam, enquanto os cantos externos, com fios mais espaçados, caem, conferindo ao seu rosto uma expressão convicta e reforçando em seu olhar a urgência de suas palavras. Além da urgência, os olhos castanhos concordam com a fala em tom baixo, de quem desabafa: “Eu não sou pessimista. Eu tenho limitações, eu não sou o dono do hospital, e mesmo que eu fosse, o meu hospital tinha quebrado porque eu ia ser um péssimo administrador.”

Ele defende que para tentar salvar vidas é preciso combater em muitas frentes. Uma delas é a da prevenção.

No dia Estadual do Coração, 28 de junho, Ronaldo telefona para Marcelo, um empenhado membro da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA). Em instantes um carro o espera na porta do Incor. Poucos minutos depois, por volta das 11 horas, chegamos na Rua Líbero Badaró, 425, centro de São Paulo. É no 33º andar, que o cirurgião palestrará. O evento chama-se “Bom coração ou mau coração… Fatores de risco”, e a iniciativa é da Secretaria Municipal de Coordenação das Subprefeituras de São Paulo, em parceria com a Assessoria Técnica Saúde do Trabalhador (ATST) e a CIPA.

Marcelo posiciona uma câmera no alto da parede do fundo do auditório para depois enviar o vídeo da palestra a Ronaldo. Desde fevereiro de 2012, ele organiza eventos como esse para os servidores públicos municipais das subprefeituras e, se pudesse, estenderia um tapete vermelho para dr. Ronaldo, tamanha a admiração e respeito que tem pelo médico, que o ajudou a idealizar esse projeto e “abrilhantar” o evento.

O palestrante é do tipo que age de forma simples, dispensa adulações, embora saiba agradecer apropriadamente as gentilezas. Da mesa com petiscos montada na entrada do auditório, ele aceita levar duas latinhas de suco de uva para as secretárias do Incor, conforme insiste Marcelo. Ronaldo para apenas para beber água, entra na sala, prepara seus slides e logo deixa o microfone de lado, todos podem ouvi-lo perfeitamente. A palestra aborda a prevenção e os tipos de tratamento para as doenças cardiovasculares. Nessa época do ano, Ronaldo tem folga das aulas sobre Cirurgia Cardiovascular na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), onde é professor titular. Os alunos estão em férias, e o público que vai se acomodando no auditório é bem diferente deles. O cardiologista apresenta as quatro cavidades do coração: dois átrios e dois ventrículos, desmistifica algumas ideias que cresceram no conceito popular e, com exemplos pessoais e cotidianos, tenta mostrar aquelas pessoas de que elas vão preferir cuidar da saúde a precisar reencontrá-lo num centro cirúrgico.

Ronaldo cita o nome da atriz Angelina Jolie, que recentemente estampou noticiários do mundo todo após fazer dupla mastectomia preventiva. Assim é o câncer, tão temido que algumas pessoas se recusam até a pronunciar a palavra. O caso da atriz é diferente, os antecedentes familiares funcionaram como sentença, mas do que muitas pessoas ainda não se deram conta é que será muito mais provável que elas morram em decorrência de uma doença cardiovascular do que de câncer.

“A doença cardíaca tem uma característica muito perversa. Quando uma pessoa está na fase terminal do câncer, às vezes ela fica obnubilada por causa das patologias que acompanham o câncer; as toxinas no organismo levam a um período de confusão mental, já o doente cardiopata morre vivo, morre consciente, ele sente dia a dia que está piorando. Câncer, doenças respiratórias e diabetes, juntos, matam 22%. As doenças cardiovasculares sozinhas atingem 30% da população”, explana Ronaldo. Outro famoso citado é o nadador Ricardo Prado, que precisou colocar cinco pontes de safena. Ele é um exemplo de que, mesmo uma pessoa magra, que pratica atividade física, pode ter doença coronária. “Se ele, atleta, teve, por que eu vou fazer atividade, né? Por outro lado, não é para radicalizar”, adverte o palestrante, que costuma deixar a dica: “O segredo do sucesso é o bom senso na vida.”

O DIA QUE SEPARA OS MENINOS DOS HOMENS

“Uma japonesinha contida”, é como Ronaldo se lembra de Patrícia. Aos nove anos, seu coração já não tem mais tempo. Internada no Incor, ela enfrenta a dieta hospitalar com restrições que são motivo suficiente para aborrecer qualquer adulto. Um dia, enquanto espera pela realização do transplante, Ronaldo entra na sala e pergunta:

– Patrícia, o que você quer fazer quando sair do hospital?

– Ah, doutor, quero comer uma picanha.

No dia 12 de abril de 2003, aparece um doador compatível. Ronaldo acostumado a fazer captações de corações adultos, sob supervisão, tenta entrar em contato com o seu chefe. “Liguei para ele infinitas vezes. Ele tinha ido ao show do Deep Purple e eu não conseguia falar.” O tempo implacável está correndo. Ele recorre ao professor dr. Noedir Stolf, então diretor do Incor, que em 1968 foi assistente de dr. Euryclides de Jesus Zerbini durante o primeiro transplante de coração realizado no Brasil.

– Ué, está nervoso por quê? Você acha que o caso é bom? Então vai. Arruma tudo e vai para Sorocaba.

– Mas quem vai fazer o plantão?

– Eu faço para você.

É a primeira vez que Ronaldo faz a captação e organiza todo o processo de um transplante, so-zi-nho. “Nesse instituto o batismo é de fogo.” Ele articula com a polícia o uso de um helicóptero e vai buscar um coração que pulsa há 12 anos, a segunda chance de Patrícia, no Hospital Regional de Sorocaba, sudoeste do Estado de São Paulo. “Ela é muito importante para mim. Foi a primeira criança, e até hoje é um dos casos de transplante de que a gente tem melhor resultado.”

A menininha não foi o caso mais grave, mas foi o mais emblemático. Após 10 anos, Ronaldo recorda-o como se o vivesse hoje e guarda uma foto de Patrícia tirada ao lado de uma churrasqueira, enviada dias depois da cirurgia. “Isso significa: ‘eu posso comer a picanha agora’. É lógico que não pode abusar, mas eu não vou proibir uma pessoa de viver, não faz sentido trocar o coração e falar: daqui pra frente você não pode fazer nada.”

O sistema imunológico do transplantado sempre rejeitará um novo órgão. Ele sabe que o novo coração carrega outro DNA e, naturalmente, suas próprias marcas.

Hoje, Patrícia tem 19 anos. Seu segundo coração está chegando próximo da última batida. Em breve ela precisará de um retransplante. “O transplante não é para sempre. O órgão sofreu uma agressão, é rejeitado cronicamente, porque nós não conseguimos extinguir a rejeição. Ela vai evoluindo com disfunção do enxerto.”

Pergunto, então, para Ronaldo:

– Se o DNA do doador está presente nas células do coração transplantado, podemos dizer que o receptor tem seus dias de vida determinados pelo novo órgão?

– Se não houvesse a rejeição… Filosoficamente, eu tenho o mesmo conceito, ninguém morre de véspera, né? Até o Papa Francisco falou isso. Então, eu já tenho aqui marcado nas minhas células do que e quando eu vou morrer. Só que eu não sei até agora. A não ser que aconteça um acidente. Mas, em condições normais de pressão e temperatura, já está marcado dentro das minhas células.

Ronaldo acessa novamente o último balanço do ISHLT e mostra a curva de sobrevida de transplante. “Se a pessoa não tiver nenhuma grande complicação durante o primeiro ano de transplante, ela vai viver 13 anos.” Essa é a expectativa média. Esse é o tempo que Patrícia, William e tantos outros ganham até que a doença que mais mata no Brasil e no mundo os alcance novamente. “Será que filosoficamente a gente deve dar uma segunda chance a quem já teve ou a gente deve oferecer o transplante a quem nunca teve a chance? Sabendo que a curva de retransplante é a que tem mais mortes. E, aí? Responde essa pergunta”, pede o médico.

O cirurgão fala em dar chances, mas, apesar de os pacientes dependerem da indicação de outro médico para entrarem na fila de transplantes, a oferta de doadores é desligada do viés humano. “Graças a Deus não sou eu que faço a seleção do coração, nem pode.” É um sistema informatizado que roda na Central de Transplantes, capaz de cruzar os dados do doador com os dados dos pacientes em espera na fila. O resultado é uma lista com as 10 opções mais compatíveis, que são identificadas apenas pelas iniciais para evitar favorecimentos. A partir daí desencadeia-se o processo de transplante.

A LISTA DA ILHA

“Núcleo de Transplantes de Coração”, lê-se na porta. Entramos. À direita fica a mesa da secretária. Do outro lado, a divisória que delimita um dos departamentos também molda um corredor não muito largo. A sala que Ronaldo divide com outros dois médicos fica logo à frente. Antes, bastam dois passos para estar dentro do Núcleo, e lá está ela. A lista. Neste momento são seis folhas brancas de papel sulfite, em tamanho A4. Três em cima, mais três embaixo formam um retângulo, com colunas e linhas impressas em preto. As primeiras folhas são dos pacientes em prioridade. Ronaldo mostra as informações disponíveis: nome do paciente, onde ele mora, o grupo sanguíneo, peso, altura, pressão da artéria pulmonar, se está em prioridade ou não, o motivo da priorização, se está fazendo uso de algum medicamento e o painel, que é a porcentagem da estimativa que o paciente apresenta para rejeição hiperaguda. O painel é fundamental para a realização do transplante. “Quando a gente faz o painel, vemos como o receptor reage frente a um pool de antígenos da população em geral. Se a gente fizesse o transplante às cegas, nunca saberíamos como seria a compatibilidade do sistema imunológico.”

Há na lista painéis de 28%, 58%, 82%… Quanto maior a porcentagem, maior a chance de o receptor reagir contra um órgão ofertado. “É muito pouco provável que este doente de 82% receba um órgão. Diferente desse que é zero”, diz Ronaldo, apontando para a lista. “Quer ver um outro aqui?” Ele desliza o dedo para o lado e lê 99%. “Não precisa ser médico. Não bate a coisa. Não lhe causa uma estranheza? Quase 100% incompatível”, diz ele diminuindo o tom de voz, com a mesma expressão que faz alguém que pressente o anúncio da partida de um parente. “Isso aqui é uma sentença. O diagnóstico está feito. E como que nós vamos resolver, diz pra mim? ‘Ah, vamos tirar da lista.’ Só que você botou uma expectativa na cabeça dessa pessoa. O trabalho científico é muito frio, mas na verdade você está discutindo sobre pessoas. Ela não vai conseguir sobreviver se não fizer o transplante. Então, a gente faz um pacto do silêncio. Eu e o paciente. Ele para de perguntar, porque não vai adiantar ficar puxando o médico. Mas ele vai ficar ansioso. Porque tem que me ver todo dia. Eu tenho que examinar, tocar no paciente. Ele sente aquela energia, aquela vibe. Imagina isso quatro meses, um ano e dois meses esperando no hospital. Isso é o que se discute do ponto de vista psiquiátrico em relação ao transplante”.

Grrngrrn. A porta da sala abre. Dr. Fábio Gaiotto, coordenador do Núcleo de Transplantes de Coração, entra. Sua mão estala forte ao cumprimentar Ronaldo, que nos apresenta. Enquanto isso, os olhos de Fábio percorrem rapidamente o ambiente e param sobre a lista.

– Ó, o stress – diz o coordenador.

– Estou mostrando a lista para ela – explica Ronaldo, já rindo da sincronicidade.

– Não fala essa palavra – diz Fábio, em tom de brincadeira.

– Estou falando para ela até agora…

– O Ronaldo entra no Incor, perguntando: “E aí? e aí?” – revela Fábio.

– Éééé – concorda Ronaldo, divertindo-se com a imitação do chefe, que continua, no mesmo tom de Ronaldo: “Tem ligação? Tá sabendo?”

– Cara, isso aqui é uma angústia. Não sei se é bom deixar aí para a gente ver todo dia ou se é melhor não deixar porque você fecha o olho em casa e acorda com uma tabela na frente.

A lista está sempre em movimento. Entram novos pacientes e outros saem, sempre por um motivo fatal. Fátima, a secretária é encarregada de atualizar a lista.

– Quando a gente acha que… esse final de semana vamos dar uma descansada, meu fim de semana de folga.. Abrimos o e-mail e o primeiro que vem é: a lista atualizada!

*

Dr. Ronaldo gostaria de frequentar uma academia; por enquanto sua alternativa é trocar os elevadores pelas escadas quando precisa descer alguns andares. Ele perde o fôlego, mas só se estiver conversando. O cirurgião não encontra tempo para outra atividade física, porém mantém os cuidados com outro fator de risco para o coração. Há mais de 25 anos ele conseguiu parar de fumar, embora até hoje sonhe que fuma. Na alimentação procura evitar excessos, sem dispensar um docinho de leite de colher para a sobremesa. Ele até entrou numa dieta. “Eu estou na do açaí. ‘Assa aí uma picanha, assa aí uma costela, assa aí uma linguiça’, por isso que eu estou redondinho assim”, brinca sobre seu físico. No mais, na vida pessoal e profissional ele se sente uma pessoa bem realizada.

“O que eu faço é glorificante. Meus pais já são felizes porque eu venci na vida. Eles, minha namorada, minha ex-mulher têm um puta orgulho de mim. Você vê que as pessoas passam, me cumprimentam, dão parabéns e advogam a favor da causa.” Ainda assim, ele entende que a sua missão não terminou. Ele precisa treinar duas ou três pessoas que queiram continuar o seu legado. “Fazer o que eu faço qualquer um faz. Treinando, faz. O desafio que eu enfrento agora é treinar outros para que continuem”.

O primeiro discípulo, dr. Lucas, tem 32 anos e trabalha no Hospital Beneficência Portuguesa. Montou junto com o dr. Ronaldo um serviço de transplantes. “Inclusive ele está pondo pilha para fazer os negócios. É tão doido ou mais que eu. Foi uma grata surpresa. E ele fica lá falando para fazer transplante, fazer transplante, fazer transplante. Quer dizer, no meu tempo de folga ele quer que eu trabalhe mais”, revela o médico que coloca na lista de sonhos pessoais o de poder fazer um transplante por dia. Talvez seja impossível, mas Ronaldo gosta mesmo é de ter muitos desafios pela frente, e essa lista vai desde os que precisam de anos para serem vencidos, quem sabe signifiquem a batalha de uma vida inteira, até os que ele pretende conquistar a curto prazo: como promover o uso de um novo dispositivo de assistência ventricular, que ele conheceu durante um congresso e a respeito do qual se especializou no exterior para poder implantá-lo no coração dos pacientes.

O Heart Mate II é a segunda geração de dispositivos desenvolvidos pela Thoratec, fabricante norte-americana, que conseguiu resultados animadores. O dispositivo tem uma espécie de bomba ligada ao ventrículo esquerdo, que inova pela flexibilidade, proporcionando movimento ao paciente e prolongando a expectativa de vida para 17 anos, com casos de descompressão da parede do coração e melhora da fibra cardíaca a ponto de o paciente se recuperar, retirar a bomba e deixar a fila de transplante. A Anvisa deve liberar a regulamentação para o uso no Brasil, com estimativa de custo de 550 mil reais.Ronaldo é o único cirurgião no País certificado para essa operação.

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O PROGRAMA DO DISPOSITIVO HEART MATE II (FOTO ANDRÉIA ASCENÇÃO)

O próximo desafio também está relacionado ao coração. “Eu gostaria muito de ter uma estabilidade emocional, porque com isso muitas outras coisas viriam.” Ronaldo tem profunda consciência sobre seus valores e anseios. “Não adianta nada eu fazer dois transplantes na semana, os pacientes ficarem bem; fazer 20 transplantes consecutivos sem ter nenhuma disfunção de enxerto, se não tiver com quem compartilhar essa vitória. Vou chegar em casa e conversar com a parede? ‘Parede, mais um, deu certo!’

Acredito que nenhum sucesso é pleno se você não tem com quem compartilhar. O gosto da vitória deixa de ser tão saboroso quanto ele é.” Ronaldo mora sozinho em São Paulo. Sua namorada mora em Limeira, interior do Estado, mas aceitou um emprego novo na capital. Está tudo combinado. Em breve ela vai morar com ele, pelo menos na maioria dos dias da semana; nos outros ela volta para Limeira para ficar com a filha do primeiro casamento. Ronaldo deseja fortemente que esse relacionamento dê certo. “Você vai achar bobo”, diz ele sem ficar acanhado. “Eu quero casar”.

ANDRÉA ASCENÇÃO é jornalista e escritora, especializada em produção de jornalismo literário. É biógrafa da banda Ultraje a Rigor. O texto acima foi escrito em agosto de 2013 e venceu o Prêmio Clovis Barbosa, destinado ao Melhor Texto de Jornalismo Literário, 2014. Leia aqui outros textos da autora.

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