Infância e adolescência entre muros 7

Infância e adolescência entre muros

7

Nathalia Maciel Corsi

Um ato de amor recíproco: experiências de adoção tardia – parte 1

JL2015 Texto Site Nathalia Corsi Capítulo 7 Foto 1 003

Celmara e Eduardo com as filhas Ana Carolina e Silmara.
Foto: arquivo pessoal de Celmara Mendes.

Antes que o marido saísse para o turno seguinte de trabalho, Celmara serviu o almoço. A filha, Fernanda, estava na faculdade e avisou que não almoçaria com os dois. Sentado à mesa de frente para a esposa, entre uma garfada e outra, Eduardo tomou coragem para verbalizar algo que estava sendo preparado no coração do casal havia muito tempo.

– Amor, posso te fazer uma pergunta?

– Pode. Faça.

– Mas não precisa responder agora. Te dou um tempo pra pensar.

Dois olhos azuis o fitaram apreensivos por alguns instantes, até que ele continuasse.

– Vamo adotar?

Os olhos relaxaram.

– Como assim vamo adotar e eu não posso te responder agora? Claro que sim!!!!!

A reação da galega de 39 anos foi sair pulando e dançando pela casa. A vontade era gritar feito doida, aaaaaaaaaaaaah colocar o que estava sentindo para fora. Para surpresa ainda maior, o marido tinha pesquisado tuuuuuuuudo a respeito da adoção. Já sabia toda a documentação necessária, inclusive que dali a dois dias haveria uma reunião informativa na Vara da Infância e Juventude de Curitiba, que coincidiria com o dia de folga dele. Começou o corre-corre. Eduardo foi trabalhar e deixou a dona de casa com duas tarefas: começar a arrumar a papelada para dar entrada no processo de adoção e controlar sua euforia. A segunda com certeza a mais difícil. Tantos sonhos, vontades, planos…. Ele queria que o assunto ficasse em segredo, mas ela o convenceu a contar pelo menos para os familiares mais próximos.

No relacionamento de Eduardo e Celmara, as iniciativas sempre foram tomadas por ela. Foi ela quem o pediu em namoro, numa noite de carnaval. Depois de seis meses juntos, foi ela quem o pediu em casamento. Foi ela, também, quem comprou as alianças. Mulher intensa, expansiva, entusiasta e inquieta. Ele é mais sisudo e introspectivo. A personalidade explica por que os tradicionais pedidos foram invertidos na história do casal, mas o gesto do marido no almoço daquela terça-feira reavivou em Celmara o sonho perseguido ao longo dos oito anos em que estavam casados. “Foi a pergunta mais importante da minha vida”, resume.

A filha Fernanda, hoje com 24 anos, é fruto de um relacionamento antigo. Ser mãe de novo era um desejo muito forte, mas os filhos não vinham. A pílula anticoncepcional foi suspensa e nada de neném. Exames foram pedidos pela ginecologista e estava tudo normal: ela estava ovulando e fértil. Duas videolaparoscopias foram feitas, induções de ovulação também, zilhões de simpatias foram cumpridas, mas a menstruação continuava fiel a Celmara. Todo mês, quando dava as caras, aumentava mais a angústia e a sensação de impotência. Eduardo também se submeteu a uma série de exames e os resultados estavam normais. Foram cinco anos de tentativas, loucuras e tratamentos, mas os testes de gravidez continuaram negativos. A frustração descontada na comida fez Celmara engordar 30 quilos. O aparecimento de um cisto a obrigou a retomar o uso de anticoncepcionais. Foi então que o casal desistiu da gravidez. Ela cogitou a adoção, mas o marido deixou claro que não queria.

O coração de mãe, sedento pela bagunça e pelo carinho de uma criança, foi acostumando a se ocupar com as três filhotas peludas, os filhos das amigas e o sobrinho, que sempre passa as férias sendo paparicado na casa dos tios. Até que o coração de pai se abriu. “Quando eu me acostumei que seríamos só nós na velhice, ele veio com essa pergunta, mas isso de tanto eu mostrar o lado bom da adoção; que não é o sangue que faz a família.”

O perfil ficou a critério de Eduardo. “Eu quero ser mãe, o tititi aqui é você”. Ok, fácil de resolver: uma criança até cinco anos, sem delimitação de sexo ou cor, saudável. Não parou por ai. Celmara mexeu seus pauzinhos. Começou a ler para o marido os artigos e depoimentos sobre adoção que achava na internet. Pensando em não passar por toda a tramitação burocrática mais de uma vez e entendendo melhor a realidade das crianças abrigadas, Eduardo decidiu ampliar o perfil: duas crianças, de zero a oito anos, sem preferência por sexo ou cor. Só não podia ser criança especial. “Ele disse que não quer, porque ele vai se sentir incapaz, não vai dar conta, não adianta forçar né?”, explica. Se o perfil ficasse por conta de Celmara provavelmente não haveria essa restrição. Branco, preto, azul, amarelo, com uma perna, duas ou três, com uma ou cinco cabeças, era indiferente. Ser recém-nascido também não era um pré-requisito para ela. “Eu não queria um filho ou uma filha para bater na cara da sociedade, eu queria ser mãe.”

O processo foi mais ágil do que imaginavam. Ufaaa!!!!! Celmara é ansiosíssima, mas a espera demorou menos do que os nove meses de uma gestação. A habilitação saiu em apenas três meses. Por ter feito amizade com pessoas engajadas em grupos de apoio à adoção, conheceu a possibilidade da busca ativa, e foi por esse meio que, quatro meses depois de estar oficialmente habilitada, encontrou as filhas.“Telefonema eu não recebi, as minhas meninas vieram pelo Face-Chat”, conta às gargalhadas.

Foi pelo Facebook, através de uma cegonha, que Celmara recebeu a notícia de que a Vara de Natal (Rio Grande do Norte) estava procurando adotantes para duas irmãs pardas de quatro e cinco anos, a mais velha prestes a fazer seis. Interesse confirmado, fotos chegaram na caixa de mensagens do casal. A certeza de que elas eram a parte que faltava na família foi imediata. Os habilitados locais, que teriam preferência em relação ao casal, foram consultados, mas nenhum quis levar a adoção em frente. Eles foram até o fim. O estágio de convivência, para que pudessem estabelecer um primeiro contato, também foi via internet. “O meu marido não pega 30 dias seguidos de férias nem se a Dilma mandar e, um pouquinho antes da cegonha falar comigo, ele já tinha pegado 15 dias”. Entendidas as condições do casal, a Vara foi flexível. Durante 22 dias, Celmara conversou com as meninas pelo telefone ou pela webcam. Eduardo chegava do trabalho e gravava vídeos para que elas assistissem no dia seguinte, além das cartinhas escaneadas e fotos que enviavam. Quando o período de estágio terminou, ele acertou os cinco dias de licença paternidade a que tinha direito para irem buscar as filhas.

PAAAI, MEU PAI CHEGOU! Assim que o viram, as duas pequenas se atiraram nos braços de Eduardo. Enchiam a boca para chamá-lo de MEU PAI! Quando souberam que o papai e a mamãe iriam buscá-las, não esperaram ajuda para arrumar suas coisas. Começaram a colocar suas roupinhas em sacolas de supermercado. Sabiam que iriam para casa. QUERO IR EMBORA PRO PANAMÁ, a mais nova repetia. Despediram-se da equipe do abrigo e embarcaram em um táxi com os pais. “Foi o momento em que minha ficha caiu, só nós quatro, ali eu vi que tudo era verdade e que elas eram nossas!”, conta a mãe, que, no início, ficou um pouco pra escanteio.

O foco era o pai. É comum crianças abrigadas sentirem bastante a carência paterna. Inconscientemente, muitas delas sentem também a rejeição da genitora e, por isso, apegam-se ao pai nos primeiros dias da adoção. Andar na rua era só de mãos dadas com o papai, comida era o papai que tinha que servir, beijocas por vontade própria a toda hora no papai, e o papai estava maravilhado com os dois “grudinhos”. Mamãe? Só pra dar banho e ajudar a se vestir. Era chamada a toda hora de tia, do mesmo jeito que se referiam às tias do abrigo. Celmara soube lidar bem com a situação. Sabia que era apenas uma fase. Estava adorando ver o pai atencioso que o marido estava sendo, como nunca imaginou que seria. Nem por isso, deixou a brincadeira rolar solta. Enquanto o pai babão não conseguia dizer não para nada, era ela quem impunha os limites. Tomava o brinquedo quando as duas brigavam por não querer dividir; ditava o horário para ir dormir e tomar banho; repreendia quando gritavam ou bagunçavam demais. Tudo para que as meninas entendessem que na família, além de muito amor, haveria regras.

Quando a licença paternidade de Eduardo chegou ao fim, as meninas ficaram mais receptivas em relação à Celmara. Elas pediram várias vezes para mamar no peito e sempre ouviram como resposta que não tinha leite e que já estavam grandinhas para mamar. Certo dia, o pedido de mamar veio mais uma vez e foi aceito. As meninas puderam conferir por conta própria que não havia leite nos seios e esse ato fez Celmara ser reconhecida como mãe. Ganhou beijos e a mais novinha disse que era seu bebê. A partir disso, nunca mais foi chamada de tia.

Depois que as florzinhas Ana Carolina e Silmara (sim, coincidência!) chegaram na casa e na vida do casal, foram se integrando à família de maneira tranquila, o que não quer dizer que não protagonizaram episódios de regressão, ciúme, questionamentos e outros conflitos naturais da adoção tardia. A adaptação só foi tranquila porque Celmara e Eduardo estavam preparados. A realidade à qual as duas pequenas estavam habituadas mudou radicalmente.

Saíram de Natal com a temperatura em 35ºC, entraram num avião e chegaram em Curitiba com chuva e os termômetros marcando 10ºC. Até ali, nunca usaram uma blusa de frio na vida. De repente, ganharam bota, toca e luva. Foram instruídas a fazer coisas como limpar a boca com guardanapo e escovar os dentes sempre depois das refeições, o que não era um costume. O sotaque das pessoas com quem passaram a conviver era estranho a elas. Até o jeito de ser das pessoas, uma novidade a parte. Naturalmente cativantes e carinhosas, elas vieram para um lugar onde o povo, em geral, é mais fechado.

Mais do que aspectos culturais, as meninas carregavam uma vivência familiar negativa. Celmara e Eduardo decidiram não revelar para ninguém o que está escrito nos documentos que trazem o histórico delas. A cada vez que o passado é relembrado, é como cutucar uma ferida. Está tudo impresso e guardado para quando elas crescerem e quiserem ver, mas é algo tratado como uma particularidade que cabe somente à família. Passados quase dois anos da adoção, as marcas que ficaram principalmente na memória de Silmara, a mais velha, certamente ainda influenciam parte de seu comportamento. Precisaram ser respeitadas e estão sendo, a cada dia, superadas com muita paciência e amor.

As alegrias que as filhas trouxeram são maiores que as dificuldades iniciais enfrentadas e problemas que possam surgir. É uma coisa assim que a gente para e pensa: como eu vivi antes disso? Era tão sem graça. Era tão sem sal né, não tinha emoção nenhuma. Hoje, eu sei que vou chegar em casa e as minhas nega tão de pijama lá…e eu vou sair à noite…mas, calma, depois a gente arruma! Junto de si, trouxeram cor, alegria e mais valor para a vida dos pais.

A parede do quarto decorada com figurinhas das princesas da Disney é um convite a sonhar. Sonhar junto com a mãe, o pai e a irmã mais velha. Perceber que a adoção é dar a luz a uma nova vida. Intuir que é uma via de mão dupla. Preenche-se e se é preenchido; transforma-se e se permite ser transformado. Entender o quanto eles esperaram por suas princesinhas. Enxergar que a arrumação do quarto foi um ato pequeno perto da disposição para acomodá-las na nova rotina. Os travesseiros sobre a cama escondem tesouros. Descobrir o mundo que existe em baixo deles é também uma convocação a fantasiar. Fantasiar junto com Sil e Ana. Sentir a grandeza que tranqueirinhas e bilhetinhos podem ter aos puros olhinhos das irmãs. Presumir que um pedacinho de papel com um beijo de batom e uma carinha feliz desenhada com caneta Bic é a materialização do amor para elas. Um amor que ainda não haviam experimentado e que não escapará mais delas. Está guardado e seguro, bem debaixo das cabecinhas que ansiavam por um direito seu enquanto crianças, reconhecido constitucionalmente, mas que se torna distante para muitos dos abrigados: ter uma família.

E elas falam…. A Ana disse que, quando ela crescer, ela quer adotar um monte de cachorrinho na rua, criança ela só quer uma. E a Sil fala que ela quer adotar bastante criança! Fala que vai trabalhar e ter dinheiro pra adotar bastante criança. Tá bom! Deixa ela. Preciso de netinhos mesmo!

*Os nomes das crianças e adolescentes abrigados foram substituídos nesta reportagem para proteger sua identidade.

Continua.

Infância e adolescência entre muros – Nathalia Corsi – Capítulo 1
Infância e adolescência entre muros – Nathalia Corsi – Capítulo 2
Infância e adolescência entre muros – Nathalia Corsi – Capítulo 3
Infância e adolescência entre muros – Nathalia Corsi – Capítulo 4
Infância e adolescência entre muros – Nathalia Corsi – Capítulo 5
Infância e adolescência entre muros – Nathalia Corsi – Capítulo 6
Infância e adolescência entre muros – Nathalia Corsi – Capítulo 7
Infância e adolescência entre muros – Nathalia Corsi – Capítulo 8
Infância e adolescência entre muros – Nathalia Corsi – Capítulo 9

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