DINHEIRO DE ALMA BOA

Caso brasileiro de empreendedorismo social é sinal de um admirável mundo novo possível. De verdade.

Edvaldo Pereira Lima

Alessandra França tinha apenas 16 anos quando descobriu que Muhammad Yunus existe.   Foi um choque.  Dos bons.  Desses que impactam a alma, tocam o coração, fazem despertar a fagulha da criatividade rebelde.  Principalmente quando ainda somos jovens assim, mente impoluta dos condicionamentos culturais que vão nublando nossa visão das coisas com o passar dos anos.

O professor de economia de Bangladesh é protagonista de uma história épica. Um dia, há muito tempo, leva seus alunos da Universidade de Chittagong para o campo.  Quer dar-lhes uma vivência da pobreza, de como as pessoas – milhões de nós – passam pela vida subsistindo na economia de extrema escassez que impera no mundo. Uma senhora de uma vila que visitam faz banquinhos de bambu, mas tem que comprar a matéria prima com dinheiro emprestado de agiotas que cobram até 10% de taxa por semana. O lucro por peça não passa de um centavo de taca, a moeda bengali.

Sensibilizado com o círculo vicioso em que estão enredadas essas mulheres que tecem produtos de bambu, incapazes de alavancar suas vidas para fora da miséria, escravas de um sistema econômico perverso, Yunus faz uma revisão crítica do modelo dominante desse conhecimento que ele ensina. Mais do que isso, vai à ação. Empresta do próprio bolso o equivalente a 27 dólares para 42 dessas artesãs. Constata que essa modesta quantia, emprestada pela via da dignidade e da compaixão, é o suficiente para despertar o espírito empreendedor e fazê-las formarem um colchão de segurança que lhes permitem aos poucos sair da miséria extrema.

Nasce o conceito aplicado de microcrédito. Que se amplia, Yunus navegando contra os conselhos dos bancos e do governo, até criar o Banco Grameen – “banco da vila”, na língua local – em 1983.

Os princípios norteadores do banco? 

Confiança e solidariedade. Princípios que vencem a resistência negativista dos especialistas enrustidos numa velha visão de mundo que tentam desencorajar o professor revolucionário de sua cruzada de harmonia entre o lucro e o bem-estar social, movido pela missão que se impõe de erradicar a pobreza, onde puder. O banco cresce, em poucos anos chega a milhares de unidades de atendimento, mais de oito milhões de clientes, lucro quase todos os anos, retorno de mais de 97% dos empréstimos concedidos. E o mais importante, Yunus e seu banco ganham o Prêmio Nobel da Paz de 2006, influenciam iniciativas semelhantes em 58 países, assim como abrem a via adicional da prática de negócios sociais, através de uma unidade própria que já está presente inclusive no Brasil.

Trago você de volta para cá, leitor, e para o tempo em que Alessandra, impactada por essa história, está participando como aluna – e depois professora voluntária – do Projeto Pérola, em Sorocaba, interior de São Paulo.  O Projeto é uma iniciativa do empresário e empreendedor social Jorge Proença.  A moça, filha de uma família de pequenos agricultores que um dia se dá mal na vida e muda para São Paulo, ganha uma bolsa de estudos, no Projeto, para poder cursar um colégio de qualidade. Em contrapartida, dá aulas de informática para jovens de baixa renda, alimentando, ali, um ideal e uma vocação, unidos, que vão gerar um caso exemplar de ação social consciente com o dinheiro. Nada das velhas fórmulas de filantropia, se você pensou nisso, caro leitor. O sonho é unir dinheiro e alma, ter lucro e servir.  Mas para se realizar, precisa ainda de um reforço.

Esse reforço aliado vem da iniciativa da americana Kelly Michel em implantar no Brasil a Artemísia Negócios Sociais, associação civil que se define o propósito de qualificar empreendedores e apoiar negócios de impacto social. Em 2010 Alessandra participa como estudante de um dos programas da Artemísia. Dali brota, definitivamente, sua pequena joia preciosa: o Banco Pérola, assim batizado em homenagem ao voluntariado que marcou sua vida.

O que faz o Banco?

Concede crédito a microempreendedores, microempresas e empresas de pequeno porte, num modelo de negócio totalmente distinto dos bancos tradicionais. O aval para o empréstimo é formado pela parceria solidária de três ou mais pessoas, não pela hipoteca absurda dos seus bens.  A sede física do Pérola não tem porta giratória, nem transitam por ali gerentes engravatados.   Se a pessoa se candidata a um empréstimo pessoal, tem que se comprometer em participar de um programa de educação financeira. E quem tem se beneficiado são modestas proprietárias de lojas de roupa, salões de beleza, até vendedores de carrinhos de pipoca. Gente que recebe, além de dinheiro, consultoria.

Lucro e solidariedade, juntos. 

O caso brasileiro é um capítulo envolvente da história imediata que está se desenvolvendo como tsunami de transformação que assola o mundo.  O Banco Pérola tem a ver com esses conceitos emergentes de capitalismo consciente, economia solidária, investimento de impacto, consumo compartilhado que despontam e brotam em meio e ao lado de um pântano sombrio. O lamaçal trágico de brumadinhos e   episódios dramáticos do Brasil e do mundo no qual se desmascaram à velocidade cada vez mais horripilante os descalabros de uma civilização montada no cavalo desembestado do dinheiro e na cegueira do lucro sórdido sem princípios nem valores.  A força suicida de organizações, governos, grupos e indivíduos que destroem o meio ambiente, assassinam semelhantes, coisificam o ser humano, arrasam etnias minoritárias. Psicopata e suicida porque está também destruindo seu próprio futuro. E o de todos nós, se não agimos.

O tema de fundo dessa emergência de uma nova economia é mais amplo e vasto. Transcende a questão econômica, em si.  Está atrelado a esse embate de consciência – e inconsciência – em que um velho mundo de base torpe, mas ainda muito poder, libera desmedido o uso de agrotóxicos que podem envenenar pesado seu prato de comida. Esse velho mundo que sem moral, muito menos elegância mínima que se espera de um governante, tem um porta voz que desacata a esposa de um colega chefe de Estado, menospreza em misoginia explícita as mulheres, despreza igualmente os homens de bem que de fato honram suas calças.  Retrocede nos avanços já conquistados na aceitação pacífica de que a espécie humana é povoada, sim, de seres das mais distintas possibilidades de orientação sexual, afetiva, cultural, social. Vida é diversidade, em todas as suas formas.

O drama não é só nosso, tropical, brasileiro. Pinta com iguais traços de retrocesso assustador, mas por outras vias, quadros de crueldade que da Casa Branca descortinam a desumanidade das crianças latinas afastadas de suas famílias nos centros de retenção de imigrantes ilegais. Persiste na violência absurda contra as mulheres na Índia e em todos os lugares.  Prossegue nos golpes de corrupção da Europa ilustrada ou da África faminta.

Felizmente, sinais de uma outra narrativa despontam aqui e ali, trazendo um alento de esperança. Esse do capitalismo consciente, aquele outra de uma nova ciência que une o seu conhecimento especializado ao valor das culturas tradicionais. Mais esse outro que abre um horizonte de novas possibilidades extraordinárias para o ser humano se conhecer de verdade, nas suas múltiplas camadas de existir, integrando por exemplo meditação e performance no trabalho, contemplação da Natureza e criatividade.

Essas múltiplas correntes de forças rejuvenescedoras do mundo, simbolizadas pela jovem empreendedora Alessandra, é que me dão fé de que nem tudo está perdido. Estamos no meio da grande batalha de mundos.  Mas o futuro é uma incógnita. O desafio é saltar para além da dicotomia ideológica e da narrativa rasa com que governantes e tais buscam manipular mentes e ódios, medos e frustrações. A esperança é para que cada vez mais se escolha o salto para a direção nova, transcendente, para além da caixa.

Paradoxalmente, os grandes pioneiros visionários nos mostram que esse éden de paz e vida reside simultaneamente, lá fora, no nosso mundo de ações, e ali dentro, nos corações de cada um e todos nós. A aventura é explorar o território com coragem, atravessando o próprio espelho que nos impede de enxergar melhor.

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