Nas Margens
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Auris Sousa
Identidade Fortalecida
É maio de 2014, Agnes se inunda de esperança, de força. É noite, uma nova ocupação começa a nascer num terreno em Itaquera, a Copa do Povo. As marteladas soam como se fossem o início de uma história, e os sem-teto trabalham como formigas para que no dia seguinte o terreno já esteja com um novo visual. As ocupações são as escolas da revolução. Natalia – uma das coordenadoras do MTS – tem razão. Só então, entende o “que é Marx, o que é luta de classes”.
Enquanto a luta de classes e Karl Marx não saem de sua cabeça, as mãos entram em conflito com a pá e a enxada. Finca as madeiras na terra, estende a lona. De repente tudo desmorona. Recebe ajuda. “A ocupação é uma zona autônoma que problematiza a sociedade, mas não problematiza com textos, livros, nada disso, problematiza com a prática da ocupação. O primeiro momento é a desconstrução de várias coisas, inclusive de uma subjetividade que é aquela subjetividade do indivíduo que luta sozinho, que come sozinho, que tem que pagar as contas sozinho. Desconstrói a consciência do sujeito construída pelo capitalismo”, explica.
O Movimento permaneceu na Copa do Povo por cinco meses, e saiu em setembro com a promessa de que os ocupantes poderão voltar depois que um conjunto habitacional for construído no lugar. Passado um ano, as obras ainda não começaram, não há vida, o terreno continua vazio e Agnes no aluguel. A luta não para.
É madrugada de 27 de setembro de 2014. Outra ocupação acontece, a Carlos Marighella – nome deliberado em assembleia -, num bairro nobre de Carapicuíba, Granja Viana. Agnes é a coordenadora principal. Ao todo, 400 famílias apostam na ação como uma alternativa para a tão sonhada casa própria. Os vizinhos reclamam. A ronda policial se faz presente.
“Eles fizeram processo de terrorismo. Entravam no terreno, atiravam para o alto e falavam que era gente de dentro da ocupação que estava atirando. Não chegaram a derrubar os barracos, mas um dia me colocaram no barracão [espécie de cozinha improvisada], mostraram que estavam com armas”. Agnes refaz o diálogo:
– Você sabe quem foi o Marighella?
– Eu sei!
Carlos Marighella foi um dos maiores símbolos da luta política contra a ditadura militar. Nos anos de chumbo, foi perseguido, preso e torturado. Morreu em 4 de novembro de 1969, assassinado a tiros numa emboscada policial.
– Você tem coragem de fazer o que ele fez?
– Agora a gente vive num momento diferente do qual o Marighella viveu. Mas eu tenho coragem, de acordo com o contexto, de fazer o que for necessário para garantir a democracia.
Agnes também é rio bravo. Diante das tempestades, inunda-se de coragem e força. “Nunca pensei em desistir. Pelo contrário, nos momentos em que isso acontecia, eu não saia de perto da ocupação. Isso deu mais força. O importante de estar organizado é que você não está sozinho, você tem mais força, você percebe que é possível resistir”.
O local foi deixado em dezembro, após uma negociação entre o Movimento, a prefeitura da cidade e o dono do terreno. O combinado era que mais tarde aquele pedaço de terra passaria a ser propriedade das famílias, quando ocorresse a construção de moradias populares. Isso ainda não aconteceu. Assembleias e atos são realizados para que o acordo saia logo do papel.
É 26 de agosto, mais uma manifestação está prestes a acontecer. A concentração é na Praça das Bandeiras, em Carapicuíba. O sol começa a se despedir, já passa das 17h. Dezenas de pessoas esperam por Agnes. Sento-me no murinho de um chafariz sem água junto de mais três pessoas, que conversam com um senhor que está em pé.
Uma mulher de pele clara, cabelos cacheados, fala que só faltou num encontro do Movimento. Ao seu lado direito está um homem de estatura baixa, pele clara, nariz afinado e óculos de armação fina, calado, só escuta. De seu lado esquerdo uma senhora negra de colo farto, cabelos crespos, presta atenção. Em sua frente, o senhor, de bermuda clara, camiseta branca, barba sem fazer, cabelos grisalhos, e desdentado afirma que compareceu em todos os encontros.
– Qual é a pauta do ato de hoje?
– Vamos para Câmara dos Deputados. Você faz parte do Movimento?
– Não. Sou jornalista. Vim conversar com a Agnes.
– Ah, ela ainda não chegou.
– Sou Francisca. Estou no Movimento desde o começo da ocupação [Carlos Marighella]. Este aqui é meu marido, – coloca as mãos no homem que está ao seu lado.
Abre uma pasta esverdeada, retira documentos, que carregam pesos de provas. São os comprovantes de inscrições de programas de habitação feitos na cidade, mas para Francisca é muito mais que isso: são tesouros, que podem lhe garantir um pedaço de terra. “Já fiz três. No primeiro, há 19 anos, fui sorteada, mas não estava presente, perdi. Minha amiga viu tudo, ela também foi sorteada, já mora nos predinhos. Quando fui atrás da minha unidade, a prefeitura disse que eu não tinha sido sorteada”, conta indignada.
A piauiense não perde a esperança. Os filhos já cresceram. Os netos chegaram, e nada da casa própria. Mora numa casa de aluguel, com dois cômodos, que acomodam o marido, os filhos, o genro e os netos. “Somando tudo são dez pessoas morando no mesmo lugar. Eu procurei fazer tudo de forma correta. Agora entrei no Movimento, e tenho fé em Deus que vai dar tudo certo. Vou conseguir pegar a unidade que é minha por direito, porque fui sorteada. O que sair pela ocupação vai ficar pra minha filha”.
Continua.
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