Excerto de Colômbia Espelho América 26

Excerto de Colômbia Espelho América 26

 

Edvaldo Pereira Lima

 

São Paulo:  Clube de Autores, 2013.

Link: https://clubedeautores.com.br/book/146568–Colombia_Espelho_America_26#.UoT_Avnrycg

Macondo Ou Aventuras no Reino do Realismo Mágico

O pessoal da Corporacción Nacional de Turismo não entende por que insisto em ir a Aracataca. “Não tem nada lá, é apenas um povoadozinho à beira da estrada para Bogotá”, dizem. Mas quero ver onde nasceu Gabriel García Márquez, que chamam carinhosamente de Gabo ou Gabito, por aqui. Não importa que já não seja a mesma do seu tempo de infância, algo existirá de Macondo. Também prefiro ir sozinho, de ônibus, forasteiro no meio do povão.

Estou cedinho na rodoviária de Santa Marta. Rodoviária, força de expressão: não existe plataforma de embarque, tudo se amontoa como num confuso pátio de estacionamento, poeira em profusão. Os ônibus não têm letreiro avisando o destino. No guichezinho meio do sem vergonha, o funcionário mostra com o dedo: ônibus para Aracataca, prestes a sair.

As tintas berrantes identificam o pomposo nome da empresa, Coolibertador. Nas laterais da carroceria, o orgulho da frota: serviço Superpullman. Da traseira sai a escada que sobe para o teto, bagageiro ao ar livre. Na porta da entrada, nem cobrador ou fiscal, poltronas não numeradas. Perdão, assentos. Que são vermelhos, capa plástica branca protegendo a parte superior. O teto, forrado, com pano também vermelho. Em torno das lâmpadas, no alto, adornos de rendas como abajur, balançando ao vento. Outra vez, vermelhos. Pendurados sobre o vidro frontal do motorista, mais fieiras de rendas. Em branco encardido, azul. À sua frente, no alto, para que possa ver o interior do carro, dois grandes espelhos. Emoldurados nas laterais por felpudo trabalho artesanal em tecido. Um, amarelo, o outro… vermelho. As cortinas laterais, das janelas dos passageiros, têm as pontas suspensas, voltadas para o centro do corredor, onde se prendem no teto. Naturalmente, vermelhas.

Embarca muita gente, famílias inteiras. Sobe a menininha de rosa, babadinhos no vestido. Sobe a velha negra, gorda, que se esgueira difícil para sentar, banco da frente quebrado na posição reclinada… Sobe a boazuda, seios fartos, barriguinha de fora, livre entre a camisa azul e a calça. Vermelha.

Meu assento é de janela. Ao lado, o mulato baixinho, gordo, calça e camisa bege, aberta no peito. Pendurado no pescoço, o colar de ouro. Dispara a falar comigo, gesticula descoordenado. Grandes imagens no ar, braço esquerdo voando para o teto, direito quase saindo pela janela.

Chispa, troa, retina, engole os finais das frases, emenda palavras. Vejo que entender essa boa gente menos letrada é dureza, de nada adiantam meu razoável espanhol, nem os meses que vivi na Costa Rica, anos atrás. Aprendo que a turma não fala más o menos, diz maomeno, em vez de es do verbo ser prefere o e, não respeita o para, gosta do pa. Mesmo assim, é pouco para entender. Porque o homem está uma metralha. Tento captar pos osmose, não dá, uma palavra aqui, outra acolá. Ensaio evasivos ah, si? para desestimular, o tiro sai pela culatra, ele se entusiasma, deduz que me interessei pela conversa. Descobre que sou jornalista do Brasil, que saber se o Pelé é senador.

Passa o aeroporto, ele aponta agitado, matraqueando carbón, carbón. O único que vejo é o navio paralelo à costa. Mais à frente, dois caminhões pesados, mina de carvão ou algo assim. Entendo então a agonia explicativa dele: o pó do carvão sobe, atrapalha as turbinas dos jatos quando decolam. Dois deles caíram, afirma convincente. Ou pelo menos assim entendo… faz de conta.

Logo estamos em Ciénaga, primeira parada. Ele mostra os trilhos enferrujados da velha estrada de ferro que buscava banana em Aracataca. Vai descer, estende a mão, gesto de amizade. Quero saber o nome, ilumina o rosto de vaidade, trina a língua nos dentes:

            – Ruana, Rrrrrruuana! Juan Rrrrrruuana.

            Não confio nos meus ouvidos, quero conferir:

            – Juan Huana.

            Nem diz que sim nem que não, ressoa a língua nos dentes outra vez:

            – Rrrrrrrrrrruuuuana! Ruana.

            Vou à forra, digo o meu, sei que é difícil para eles. Retruca, contente, vitorioso menino de escola:

            – Edubáldo! Edubáldo!

Desce Juan, levando a malinha amarrada em fita plástica. Vermelha, pois sim? Entra o batalhão de vendedores, grandes vidros nas mãos, cinco litros de água amarelecida, gelo picado, concha de sopa, para servir. Sucos de laranjas, roscas, arepas, pãezinhos quentinhos. Velocidade estonteante, explode a orquestra de marketing:

            – Naranja! Naranja! Los jugos! Jugos, jugos, jugos, jugos! Veinte pesitos! Veinte pesitos! Calenticos! Calenticos!

            Fora, na praça, cena de Índia. Mendigos, muita gente, bicicletas, jipes. Conversas nas esquinas, circulação geral. E o coro das partidas:

            – Barranquilla! Barranquilla!

            O velho de chapéu, camiseta furada, trapo sobre o ombro, limpeza para o suor. Restos de dentes, o de ouro na frente, boca escancarada:

            – Aracataca, Fundación! Aracataca, Fundación!

Ao meu lado, agora, mocinha de uns dezesseis anos. Sapatos de lona. Vermelhos. Calça jeans azul, brincos, prendedor de cabelos, camisa novamente vermelha. O prendedor é de plástico duro, tem forma de borboleta. No centro da borboleta, o lacinho… amarelo. A borboleta… vermelha! A mocinha é mulata, grandes olhos negros, nenhum batom, tampouco unhas pintadas. Mastiga sem pressa a primeira de muitas arepas. Pergunto o nome, entendo “Ébelin, Ébelin”. Évelim, suponho, veio visitar a mãe, hospitalizada. Pergunto de onde é, solta o nome da família dos incompreensíveis:

            – priapriee.

            – Popayán?, arrisco sem lógica, só para me dar outra chance, sabendo que Popayán está muito longe daqui. Melhor que nada tentasse, porque ela insiste, enriquece:

            – priaprieebil!

Ouvidos enganosos, os meus. Rimos, eu desisto. Mesmo porque já não dá para falar. O cobrador liga o toca-fitas, tesouro compartilhado, para o ônibus inteiro ouvir. Música vallenata, típica da região, algo assim como a música caipira no Brasil, ou pelo menos é o que sugerem os primeiros acordes. Os cantores previnem: Vamos, muchachos y muchachas, agárrense que allí va. Toques de tambor, som de algo que parece “raspadeira”, música desenfreada em ritmo de amalucar motorista. Porque o lamento sai bem sobre os ouvidos dele: Ay, mi alma, me muero, me muero! E por que morrer? Te quiero, te quiero! (em altos brados). A coisa começa a ficar meio para o perigosa quando os músicos aproveitam o refrão, convidam a dançar: Baila, baila! Bem na curva…

Mas, na beira da janela, a súplica à ingrata: Levantate, morenita, por favor. E para que levantar-se, ouvir a serenata? Para ver si asi me pobre alma descansa. Malvada mulher desalmada sem dó: Quieres ver la destrucción de un hombre nobre? Feridos do coração, esses músicos vallenatos: Si um vallenato se muere de dolor, a causa, seguro, é la matadora tristeza de un amor. Por isso, la nostalgia que siempre llevo, porque del alma arrancar no puedo (acordes estridentes de acordeón).

Alguns enfrentam amarguras menores. Versão caboclo/colombiana de Namoradinha de um Amigo Meu. No beco sem saída, só pedindo a ajuda do colega: Me busqué en un callejón sin salida, porque ahora me enamoré  locamente de una amiga. A solução para a timidez é o rum: Esta noche tomo ron y me voy a declarar. Mas aí os atropelos do álcool, los tragos me vuelven liso, e então, rapaz, pierdo el control de mis actos, é o desastre do beliscão: La pellisco.

Para os enfastiados, a descoberta de como as relações mudam: Cuando yo conocí esa mujer, me miraba, también la miraba. Mas ahora que ha metido en mi alma ella no me quiere responder. E a segunda voz: Ay!, que cosa! (aos berros). O herói de volta, à beira do pranto, criança perdida: Igual que un niño abandonado me siento yo! É puxar ar, encher os pulmões, dá-lhe compaixão: Igual que un loco, apasionado, traumatizado, no sé que hacer (ao fundo, gemidos pungentes de ui, ai!).

O ônibus para numa vilazinha. Na porta do açougue rústico, carne fresca de gado. Desce a passageira muito jovem, filha pela mão, outra no colo. O cobrador está ali fora, bem ao lado da minha janela, ajudando-a com a caixa de papelão, o saco de algodão. É virar a cabeça para apanhar a sacola grande da mulher e – ziz! – passam-lhe zunindo pela orelha os restos de arepa que “Ébelin”, saciada, lança pela janela.

            De novo na estrada, quero saber das fitas vallenatas, puxo conversa com o cobrador:

            – Sabes cuál es el nombre del cantante?

            Definitivamente não é o meu dia de espanhol. Ele entende que lhe peço para me avisar quando chegarmos a Aracataca, porque o ônibus prossegue até Fundación, cidade adiante. Procura me tranquilizar (?!):

            – Le aviso.

Cruzamos rios, chegamos a umas barracas vendendo grandes toalhas de banho, beira na estrada. O cobrador me chama, desço frente a uma vendinha. Mesas rústicas, tamboretes de madeira, máquina de fliperama, duas geladeiras velhas. Fervendo de sede, peço refrigerante Postobón. Na mesa, multidões de moscas disputam-me o sabor uva. O proprietário quer ser prestativo com o gringo freguês. Desaparece no fundo, volta cheio de iniciativa: tome Detefon nos insetos! Tenho que tampar, surpreso, a garrafa com a mão, sair ligeiro lá fora, engolir em duas talagadas fortes…

Informa que ainda estou a quinze minutos, a pé, do centro de Aracataca, o ônibus passava na entrada, o cobrador poderia ter-me orientado melhor. Saio andando, asfalto evaporando-se de sol, dez e meia da manhã. A vendinha chama-se Los Amigos.

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