A voz dos mortos 2
A voz dos mortos
2
Diego Moura
Muitos mortos
A rotina de Débora Maria da Silva se tornou um constante enterrar mortos. Os seus e os dos outros. Mas ela nunca se acostumou à tarefa. Prova disso é o Movimento Mães de Maio, quando correu atrás de mães, inicialmente de Santos, depois de outras cidades do Brasil, e começou uma andança atrás de justiça. Para tentar compreender a vida dessa pernambucana radicada em São Paulo temos de recuar nove anos, até chegarmos em maio de 2006, quando em uma semana mais de 500 pessoas foram assassinadas.
Naquele mês, a violência em São Paulo explodiu como nunca antes. Moradores da maior cidade do País viviam num aparente fogo-cruzado entre criminosos do Primeiro Comando da Capital (PCC) e as forças de segurança, que não conseguiam dar conta de policiais atacados à bala em bases comunitárias, viaturas e delegacias.
Os veículos de comunicação alimentavam seus telespectadores com relatos de rebeliões eclodindo em presídios por todo o Estado, imagens aéreas mostrando colunas de fumaça que subiam de dezenas de ônibus fumegantes, ameaças de bomba, artefatos de fabricação caseira arremessados contra agências bancárias e, misturado a isso, rumores. Boato virava fato. E fato virava notícia. Enfim, o caos.
Dias antes dos ataques na periferia de Santos, o clima era de apreensão para o gari Edson Rogério, mas o medo nada tinha a ver com a violência: no dia 10 de maio ele arrancou mais dois dentes do siso e chegou a desmaiar na cadeira do dentista. O rapaz de 29 anos não podia ver sangue, me contou a mãe dele, Débora, antes de um debate sobre a redução da maioridade penal na Faculdade de Direito do Largo São Francisco em São Paulo em meados de agosto. Rogério também se preocupava com um novo afastamento do serviço, porque 15 dias antes tinha extraído outro dente e ficado de molho. Temia perder o emprego.
Depois da cirurgia o rapaz se refugiou no colo da mãe, que fazia aniversário. Cantou parabéns com a irmã e o marido dela e resolveu dormir por lá mesmo. Na quinta-feira voltou para casa, mas na sexta retornou para alertar o padrasto – ele tinha saído para comprar ovos para o bolo de Débora – de que não desse bobeira na rua porque estavam acontecendo “coisas sinistras”. Na quarta, criminosos atacaram uma delegacia na cidade de Cubatão, vizinha a Santos.
Rogério ajudou o padrasto a acender a churrasqueira no domingo, 14 de maio, dia das mães e comemoração do aniversário de Débora. Mais tarde mordeu de mal jeito um pedaço de carne e o lugar do dente sangrou. Passou o resto da festa “jururu”, no quarto. Só levantou às 17h para cantar parabéns e, mesmo debilitado, fez questão de dar um banho no filho de 3 anos.
– Era uma despedida, cara – disse Débora.
A mãe vai lembrando detalhe por detalhe daqueles dias, daquela semana. Ela gosta de falar. Encontrou-se comigo três vezes. Uma no debate sobre a redução da maioridade penal na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, outra em um audiência sobre as chacinas de Mogi das Cruzes, cidade da Região Metropolitana de São Paulo e, a última, em sua casa. Só nesta foram quase 7 horas de conversa. Quando ela fala, fecha os olhos por longos períodos. Quase não há rugas em sua pele negra. Sua voz, com um leve chiado pernambucano, se alterna entre a mansidão de uma conversa e o agito de uma palestra. Acomodada no sofá, ela pede licença para acender um cigarro, se levanta. Os cabelos encaracolados balançam. Pega o maço e abre a porta. Lá fora, a chuva pinga.
A família passou o dia comemorando e não fazia ideia do que acontecia pelo Estado. Débora, que se considera uma “viciada em notícias”, nem ligara a televisão ou ouvira seu programa matutino favorito, o Rádio Polícia. Até aquele domingo a Secretaria de Segurança Pública contava 57 rebeliões em penitenciárias paulistas e pelo menos 100 ataques às forças de segurança, dos quais saíram 52 mortos – boa parte deles policiais militares.
Ligaram a televisão e depararam com o caos que o governador da época, Claudio Lembo (do extinto PFL) dizia controlado. Rogério não queria ver.
– Desliga isso aí, mãe. Só fica vendo desgraça…
A imagem não sai da cabeça de Débora. Na tela, uma mãe se lançava sobre o caixão do filho, um bombeiro assassinado por criminosos. O som da trombeta e o caixão descendo à sepultura foi o suficiente para fazer toda a família chorar, inclusive Rogério. Ele ralhou com a mãe:
– Ai, mãe, a senhora vai ficar aí só vendo isso, pulando de um canal pro outro procurando essas notícias. Eu vou me embora.
Deu um beijo na mãe e na vizinha, que conversavam no portão, e voltou para casa. Débora tinha levado um pedaço de bolo para ela e também voltou para casa. Pressentia que algo não ia bem e dormiu muito mal à noite. Na manhã seguinte, 15 de maio de 2006, ligou o rádio e sintonizou o dial nos 930 KHz da AM, no programa Rádio Polícia, enquanto limpava a sujeira dos dois rottweillers.
– A minha cabeça sempre foi um relógio despertador, eu nunca perdia um programa.
Continua.
A voz dos mortos – Diego Moura – Capítulo 1
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A voz dos mortos – Diego Moura – Capítulo 5
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