A voz dos mortos

3

Diego Moura

Começo do pesadelo

Em meio às notícias dos crimes, o telefone tocou. Do outro lado da linha, um policial militar aparentado com Débora pediu para que ela fosse até o local onde mataram vários rapazes e verificasse se o nome dele “estava rolando por lá” como um dos assassinos. No cenário desolador, de vários mortos, ela achou até um conhecido. Meio-dia. No caminho de volta, descobriu que um toque de recolher fora imposto. Voltou para casa. Abriu o portão. Entrou. Saiu. Fechou o portão. Correu. Chegou na creche. Pegou o neto. Voltou.

Lembrou de retornar a ligação para o policial. O nome dele “não estava rolando”, mas ela disse que sim. Queria saber a história toda. Ele alertou:

–      Avisa pras pessoas de bem não ficarem na rua. Lixo, não. Lixo deixa com a gente. Quem tiver na rua é inimigo da polícia. O aço vai comer.

Menos de uma hora depois os telefones ficaram mudos e Débora não conseguia notícias do filho Rogério. Nem pelo celular conseguia contato. Na noite anterior, ele havia dito que se “acordasse com o corpo quente” ia trabalhar. A agonia só crescia.

–      Eu entrava e saia pra dentro de casa…e eu sentia um cheiro de carne com sangue. E nada de falar com meu filho. Aquela agonia, agonia, agonia.

Ela só queria falar com o filho. Bebia água e fumava. Bebia água e fumava. Lá pelas 22h, rolando na cama sem conseguir dormir, Rogério apareceu na casa de Débora para pegar um antibiótico que tinha esquecido no domingo. Ele trabalhou durante o dia, mas a boca sangrou e inchou no fim da tarde. O encarregado mandou Rogério para casa que, sob efeito dos remédios para dor, dormiu até aquela hora. A mãe ainda insistiu para que ele dormisse na casa dela. Ele foi categórico.

–      Não, mãe, amanhã vou trabalhar, se não eu vou perder esse emprego e eu tenho que dar o dinheirinho do meu filho.

Pediu dinheiro para abastecer a motocicleta, que não era sua. Um modelo maior e mais potente emprestado por um amigo. Mal conseguia encostar os pés no chão. Débora deu-lhe R$ 10 e um beijo. Foi a última vez que se viram.

Pela segunda noite consecutiva, ela dormiu muito mal.

–      Amanheci sentada no sofá.

Ligou o rádio e sintonizou o Rádio Polícia. O locutor, como todos os dias anteriores, tinha mais uma série de desgraças para narrar. Uma matança tão gigantesca na região da Baixada Santista que ele daria os nomes por município. As câmaras frigoríficas do Instituto Médico Legal (IML) não davam conta dos mortos, arrumados em pilhas no chão. O terceiro da lista era Rogério. Nascia, ali, o Movimento Mães de Maio.

O que aconteceu depois, a mãe sabe porque juntou as peças do quebra-cabeças. Débora suspeita da Polícia Militar. Depois que saiu da casa dela, a motocicleta de Rogério ficou sem combustível e ele empurrou o veículo até um posto de combustíveis, mas o frentista não quis vender gasolina. Alegou que por causa do toque de recolher o comércio estava fechado e o patrão podia demiti-lo se visse a venda. Rogério, que havia pedido socorro ao amigo que emprestou a moto, esperava. Alguns minutos depois, duas viaturas, uma com policiais da Força Tática e a outra um Gol simples, o abordaram. O gari sempre andava com a carteira funcional e um holerite do mês no bolso e se orgulhava de não dever nada para ninguém.

O amigo, que viu tudo de longe, disse que os policiais o abordaram com truculência e bateram nele. Foram embora. Nisso, o amigo encostou. Rogério pegou sua moto, que tinha trocado com o amigo, e decidiu que ia buscar gasolina em outro lugar. Não adiantou nada o amigo tê-lo dissuadido. Seguiu pelo mesmo caminho dos policiais. Só foi achado no dia seguinte, quando a polícia disse ter ido atender uma “ocorrência de acidente de moto”. Ele estava morto com cinco tiros.

–      Mataram o Rogério, Zé! Mataram o Rogério, Zé!

O marido saiu correndo do banho, ainda com sabonete no corpo. Os vizinhos também vieram acudir Débora, que não parava de gritar. Todas aquelas imagens voltaram à cabeça dela ali, no sofá, enquanto falava comigo.

–      Quando morre um marido a gente sente. Um pai, a gente sente. Mas um filho, cara! Um filho é uma coisa…estranha. É uma parte, quer dizer, no meu caso é a metade, muito mais do que a metade.

A irmã foi ao IML reconhecer o corpo de Rogério, mas nem precisou entrar. A permissão para dirigir do irmão – guardada por Débora como lembrança – bastou. Ali mesmo, depois de desmaiar e recobrar a consciência, ela recebeu um saco plástico com a carteira funcional, o holerite e o capacete empapado de sangue. A recomendação era para que enterrassem logo Rogério. A mãe se recusou.

–      Foi uma lógica determinada isso de não ter velório – disse.

No dia seguinte, às 11h30, sepultaram o gari de 29 anos.

Ainda à beira do caixão do filho, Débora ouviu do amigo que o esperou no posto de combustível que policiais militares podiam ser responsáveis pelo crime e alertou para o fato do posto ter câmeras de monitoramento.

–      Eu tava meio grogue, mas naquela hora me deu um estalo. Na noite do velório eu não tinha dormido…isso com 18 diazepam, mais remédio líquido que me deram. Minhas irmãs tentaram me dopar, mas não conseguiram. O sistema nervoso falou mais alto.

Débora, na volta do enterro, passou na casa de Rogério, pegou alguns pertences do filho e foi ao posto de gasolina conversar com os frentistas e o vigia. Já que a polícia não tomaria a frente, ela o faria. E assim ocorreu. Investigou por conta própria e praticamente obrigou o delegado do 5º Distrito Policial, que investigava o caso, a retirar as imagens das câmeras. Já tinha um pouco de experiência com a investigação da morte do marido.

Alguns dias depois, quando Débora e o amigo de Rogério retiraram a motocicleta do pátio para onde os policiais a levaram depois da ocorrência descobriram que alguém colocara açúcar no tanque de gasolina. Isso levaria a um colapso do motor com a moto em movimento, jogando no chão quem estivesse sobre ela. A mãe se desesperou no pátio. Chorou.

–      Por que fizeram isso!? Meu filho era um trabalhador igual vocês!

O policial bateu no ombro dela, seco:

–      A senhora tem mais filho? A vida continua.

Continua.

A voz dos mortos – Diego Moura – Capítulo 1
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