Infância e adolescência entre muros 4

Infância e adolescência entre muros

4

Nathalia Maciel Corsi

As crianças reais e a sina dos adolescentes

Marcela é uma das adolescentes que vão me receber no portão azul. Deve ter uns 14 anos. Sorri para mim, depois entra em uma das salas administrativas do abrigo e some de vista. Quando a encontro de novo, ela está chorando. Os cabelos presos em um rabo de cavalo deixam em evidência as bochechas naturalmente rosadas. Ela passa tímida, de cabeça baixa. Queria fazer uma carteirinha de estudante igual a dos colegas de escola, dessas com foto, que garantem desconto em cinemas e outros tipos de ingresso. Como resposta, foi explicado a ela que não havia necessidade, já que os passeios são sempre coletivos, organizados e custeados pelo abrigo. Não poder ter o mesmo que os outros adolescentes é o motivo do choro. Ficar de mal com os tios do abrigo não vai resolver a vontade de ser igual, mas é o que está ao alcance da menina que vive entre muros.

Maíra tem um sorriso fácil, largo e dos mais sinceros. A garotinha tem uma beleza singular. É índia e tem Síndrome de Down. O cabelinho de franjinha, igualzinho ao da Tainá, do filme. Tem dois aninhos. Conforme a mãe social, Sueli, desdobra-se entre os cuidados com todos a quem auxilia, Maíra dá passinhos apressados atrás, murmurando MÃ…. MÃ…. MÃ, sua forma de dizer mãe. Ela vai atrás de quem lhe dê carinho. Quando o tio Paulo adentra em sua casa, ela imediatamente pede colo. É um colo agarrado, como os coalas filhotes fazem com os coalas pais. Depois de alguns segundos de abraço, Paulo tenta colocá-la de volta ao chão, mas ela resiste, se pendurando nele e emitindo um som de criança nervosa, como se dissesse não. Ele a mantêm no colo e ela solta de novo o sorriso porque conseguiu o que queria.

Enquanto isso, Sueli está penteando os cabelos encaracolados da branquinha Renata, que recém saiu do banho. “Ela está nervosa, hoje, não sei por quê. Tá dando de gritar. Até já dei o banho, que é pra ela refrescar um pouco”. Renata é portadora de necessidades especiais. Gosta de ir à sala de Fátima, uma das funcionárias do abrigo, porque lá ela pode mexer no computador. Sueli é quem empurra a cadeira de rodas até lá. Só que desta vez Fátima teve que ir a uma reunião e a sala ficou fechada. Talvez seja esse o motivo da irritação.

Luca mora na casa lar ao lado. Ao me ver, grita de longe OI, TIA LINDA! Depois, corre para descobrir: “O que você tá fazendo aqui?”. “Vim fazer uma visita”. Para cada resposta, uma nova pergunta. Curioso, nenhuma explicação dada parece deixá-lo satisfeito. Quer saber os por quês de tudo. Até que se cansa do interrogatório e volta a brincar com outras crianças. O molequinho de cabelo castanho liso está no auge de seus sete ou oito anos. Serelepe e desinibido, age como líder da turminha.

Com nove meses de idade, Iuri é o caçula do lar. Está pronto para a adoção, mas 15 pretendentes já foram consultados pela Vara e nada de encontrar um papai ou uma mamãe para ele. Ninguém entre os 177 habilitados ativos de Londrina. Iuri apresenta alguns sinais de atraso motor, o que gerou a suspeita de que ele possa desenvolver alguma deficiência futuramente. Por ainda ser um bebê, não é possível um diagnóstico certeiro. A juíza optou por buscar, então, uma família apta para adotar uma criança portadora de necessidades especiais. Não havendo pretendentes na própria comarca, o próximo passo é recorrer ao CNA, onde constam 1308 habilitados para esse perfil. Tranquilo no bercinho, Iuri é uma criança adorável, sem nenhum problema aparente. Arregala os olhinhos quando alguém se aproxima, como se quisesse interagir. É o xodó de Vanderlua, uma das mães sociais.

“Ás vezes eles precisam de um abraço, às vezes é preciso dizer não para algo que eles fazem”. Vanderlua tem 41 anos e quatro filhos. Para ela, o cuidado e preocupação com as crianças e adolescentes da casa lar é amor de mãe mesmo. As mães sociais estão ali para ser alguém em quem eles confiem. Estão ali tanto para ajudar a suprir necessidades afetivas, como para prestar os cuidados diários referentes a eles, passar para eles valores, carinho e educação para que cresçam com uma boa orientação.

Além das mães sociais, há também duplas psicossociais que atendem, cada uma, duas casas, ou metade das crianças e adolescentes do abrigo. Paulo Aguiar, que me levou para conhecer todas as áreas do local, é um dos psicólogos e auxilia a coordenação. Enquanto psicólogo da instituição, explicou que não é feito um atendimento clínico e individualizado. “O vínculo que temos com essas crianças e adolescentes é diferente, porque estamos muito próximos a eles, então a atuação acontece conforme as demandas do dia a dia”. Posso descrevê-lo como um negro alto, graúdo, bem humorado e sorridente. Depois de conhecer as casas lares, passamos por uma parte vazia do terreno para a qual ele apontou empolgado: “aqui vamos construir uma área de lazer para eles brincarem”. Fez uma pausa, revisando o que disse, e o sorriso murchou. “Se bem que aqui a maioria é adolescente né, nem brincam mais”. O abrigo Anália Franco não é uma exceção. Entre todos os que esperam por pais e mães que os adotem no Brasil, perto da metade já entrou na adolescência.

Mesmo esperando um número pequeno, foi espantoso calcular a porcentagem de habilitados cujo perfil abrange a faixa etária dos 13 aos 17 anos. ZERO VÍRGULA CINCO POR CENTO do total. A estatística é uma sentença de permanência na condição de isolamento social e familiar. É irônico que jovens sejam considerados velhos, mas o velho do qual se fala aqui é empregado no sentido de desgastado; usado. As crianças velhas e os adolescentes são tratados como mercadorias de segunda-mão, sujeitas a apresentar defeito. Por serem velhas, há nelas peças que não se troca mais. Compensa esperar e ficar com um modelo mais novo. De preferência aquele que nem lançou ainda; que vai sair novinho de fábrica.

Marcela, Maíra, Renata, Luca e Iuri são uma pequena amostra das vidas que ficam escondidas por trás dos números e das estatísticas. Cada criança ou adolescente é único. Podem ter sido afastados da família biológica por diversos motivos. Abandono, maus tratos, negligência, violência, abuso sexual, dependência química dos familiares ou outras condições que caracterizam ameaça e impossibilitam esse vínculo. Cada história é única. Cada forma de lidar com a própria história é única. Cada adaptação em uma nova família é única, assim como cada adotante é único. Qual é a reação quando são levados para o abrigo? Qual é a posição deles em relação à possibilidade de serem adotados? Qual é o sentimento em relação à família biológica? Pode-se formular mil perguntas, mas as respostas serão únicas para cada caso.

*Os nomes das crianças e adolescentes abrigados foram substituídos nesta reportagem para proteger sua identidade.

Continua.

Infância e adolescência entre muros – Nathalia Corsi – Capítulo 1
Infância e adolescência entre muros – Nathalia Corsi – Capítulo 2
Infância e adolescência entre muros – Nathalia Corsi – Capítulo 3
Infância e adolescência entre muros – Nathalia Corsi – Capítulo 4
Infância e adolescência entre muros – Nathalia Corsi – Capítulo 5
Infância e adolescência entre muros – Nathalia Corsi – Capítulo 6
Infância e adolescência entre muros – Nathalia Corsi – Capítulo 7
Infância e adolescência entre muros – Nathalia Corsi – Capítulo 8
Infância e adolescência entre muros – Nathalia Corsi – Capítulo 9

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