Memória do Futuro: Jornalismo Literário Avançado no Século XXI

Memória do Futuro: Jornalismo Literário Avançado no Século XXI

Partindo da análise de que o Jornalismo Literário encontra-se bem desenvolvido na tradição prática e bem mapeado no setor acadêmico quanto à sua tradição narrativa e ao entendimento da autonomia do autor, enquanto modalidade diferenciada do campo jornalístico, o autor lança as bases revisitadas de sua proposta conceitual/prática de um Jornalismo Literário Avançado. Busca cobrir proativamente um vazio, nessas duas frentes de ação, quanto à visão de mundo – moldada por modelos paradigmáticos – intrínseca às narrativas da modalidade. Apresenta as bases teórico/conceituais, sinaliza um histórico de iniciativas já realizadas nessa direção. Esta é a primeira parte de um artigo pleno dessa proposta.

A razão de ser deste trabalho, dividido em duas partes, é a formulação definitiva de uma proposta conceitual desenhada por este autor em momentos anteriores de sua carreira, aperfeiçoada por experiências realizadas de aspectos integrantes da mesma e pela introdução de conhecimentos Wcontribuintes atualizados, denominada Jornalismo Literário Avançado. Consiste numa atitude proativa de renovação do Jornalismo Literário, apoiada pela tradição armazenada dessa prática jornalística, bem como pelo saber acadêmico reunido ao longo do tempo, no país e no exterior, de um lado; pela compreensão de que a modalidade é dinâmica, tendo potencial intrínseco para adaptar-se a novas condições contextuais, à medida que a sociedade se transforma, impulsionada por avanços tecnológicos, mudanças de paradigmas e ascensão de novos valores, de outro lado.

O presente artigo, correspondente à primeira parte do texto total, abrange um mapeamento histórico, expõe bases teórico conceituais.

A justificativa para a proposta de um Jornalismo Literário Avançado consiste no entendimento de que três esferas de categorias de conteúdos conformam a prática e o conhecimento do Jornalismo Literário. A primeira categoria corresponde ao conjunto de princípios operativos e técnicas que diferenciam sua natureza, em comparação ao modelo convencional predominante de jornalismo. Aqui entram questões como os modos de captação da realidade – a observação participante, por exemplo, assim como a imersão a mais ampla possível do repórter/autor no universo temático definido por sua pauta –, os recursos narrativos – tais como a construção cena a cena, o ponto de vista autobiográfico em terceira pessoa – e os modos de e dição de matérias.

A segunda categoria centra-se no caráter autoral do Jornalismo Literário. A partir do rico conjunto de ferramentas disponíveis, o jornalista literário produz sua matéria com estilo próprio e voz autoral diferenciada. Ao contrário do jornalismo convencional de voz pasteurizada comum à maior parte da produção vigente na imprensa de grande circulação, no Literário prezam-se a individualidade estilística e a personalidade narrativa de quem produz o texto, entendendo-se sob essas expressões tanto o modo peculiar de linguagem textual do autor quanto a totalidade da sua maneira de reportar o real, incluindo-se seu modo de interação com os personagens efetivos da narrativa.

A terceira categoria tem a ver com a visão de mundo, o entendimento intrínseco e implícito a toda narrativa. Os textos do Jornalismo Literário carregam, inevitavelmente, o legado múltiplo dos paradigmas formais ou mesmo inconscientes que conformam o modo com que percebem, interagem com, captam e expressam o real. Nesse processo de comunicação entram em jogo crenças, valores, modelos de conhecimento pertencentes ao universo individual de cada autor, ao seu campo de prática profissional, à sociedade de sua época e lugar, às influências múltiplas procedentes das mais diversas fontes do mundo globalizado de nossos dias, numa dinâmica e complexa efervescência borbulhante dos inúmeros fatores que geram nossa construção simbólica do que entendemos por realidade.

Dessas três categorias, a primeira é a mais bem mapeada pelos estudos acadêmicos, tanto no Brasil quanto no exterior. A popularização desses estudos é exemplificada pelo trabalho seminal de Tom Wolfe, The New Journalism, que contou com o apoio de E. W. Johnson para lançarem em 1973 a edição original desse clássico, misto de considerações teóricas e antologia, cuja influência se espalharia por diversos países, a partir dos Estados Unidos, tendo provocado neste autor uma centelha fundamental de entusiasmo intelectual, quando bem jovem, ajudando a disparar sua identificação com o campo de pesquisa que se tornaria marcante na sua futura carreira acadêmica.

Contribuíram e contribuem para o conhecimento especializado nesse segmento outras obras clássicas, como Literary Journalism, editado por Norman Sims e Mark Kramer, com edição original de 1995 pelo selo Ballantine Books da Random House americana e canadense, assim como trabalhos menos conhecidos, talvez, mas igualmente relevantes, como Telling true stories, editado por Mark Kramer e Wendy Call, Writing for Story, de Jon Franklin e Matters of fact, de Daniel W. Lehman. Fora dos Estados Unidos, vale notar Escribiendo historias: el arte y el oficio de narrar en el periodismo, de Juan José Hoyos,na Colômbia.

A segunda categoria conta com abordagem menos volumosa, porém está presente de maneira mais visível, mesmo que não explicitamente atrelada ao Jornalismo Literário, em A Arte de tecer o presente de Cremilda Medina, por exemplo.

A terceira é a que menos tem despertado a abordagem dos estudiosos, sob uma ótica macro, embora aspectos específicos sejam abordados em trabalhos como Sob o nome de real: imaginários no jornalismo e no cotidiano, de Ana Taís Martins Portanova Barros e Maus pensamentos: os mistérios do mundo e a reportagem jornalística, de Dimas Antônio Künsch.

Em paralelo a essas categorias, já há uma respeitável tradição de estudos históricos do Jornalismo Literário, como exemplificam The Art of fact:a historical anthology of literary journalism, editado por Kevin Kerrane e Ben Yagoda, True stories: a century of literary journalism, de Norman Sims e A History of American literary journalism: the emergence of a modern narrative form, de John C. Hartsock. Noutra corrente, obras abrangem especialmente a segunda e a terceira dessas categorias, expondo, inclusive o caráter internacional do Jornalismo Literário, como faz Literary Journalism across the globe: journalistic traditions and transnational influences, editado por John S. Bak e Bill Reynolds. Esse livro é uma iniciativa da Association for Literary Journalism Studieswww.iajls.org -, entidade que reúne pesquisadores especializados de todo o mundo.

A terceira categoria é o pivô do foco neste artigo, por dois motivos principais.
A razão inicial é que algumas das abordagens existentes são de caráter reativo, fazendo um importante, mas específico trabalho de constatação da realidade instalada nos meios de produção jornalística, com análises significativas de conteúdos. Entendo, porém, que para benefício do Jornalismo Literário, é importante um trabalho proativo, que não se limite a constatar realidades, mas que avance na proposta de antecipar possibilidades, mapeando caminhos. A razão complementar é que já existe em desenvolvimento instalado iniciativa de amplo espectro na comunidade intelectual brasileira voltada a esse campo.

Base teórica inicial

A breve história deste processo é a seguinte:
No início da minha caminhada acadêmica, realizando um programa de Mestrado como estudante da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, incomodava-me constatar, através dos estudos em jornalismo, a prisão da atividade jornalística a paradigmas envelhecidos, pouco afeitos a propostas avançadas que surgiam noutras áreas de conhecimento. Soava-me inadequada a visão reducionista e materialista vigente, sustentada por uma leitura simplista da realidade.

No jornalismo, os alicerces conceituais procedentes da primeira metade do século XX, formulados por Otto Groth a partir do funcionalismo sociológico, apontavam como características dos periódicos os elementos atualidade, periodicidade, universalidade e difusão coletiva. Inquietava-me em particular a reduzida visão de tempo da atualidade, pois o dinamismo do mundo moderno parecia exigir do jornalismo outro horizonte temporal, mais elástico, que é a contemporaneidade. A universalidade também soava-me falaciosa, pois era óbvio localizar-se na cobertura jornalística uma limitação aos temas, valores e fontes ligadas às elites e centros dos poderes econômico, cultural e político. A leitura de mundo prendia-se a um viés racionalista, excessivamente cerebral e lógico, aos meus olhos, que traduzia no fundo um entendimento raso, simplista, da realidade.

A inquietude me conduziria a construir um primeiro patamar para o que no futuro iria denominar Jornalismo Literário Avançado: a produção da minha Dissertação de Mestrado como um modelo de abordagem teórica para o jornalismo baseado na Teoria Geral de Sistemas, formulada por Ludwig von Bertalanffy – principalmente – e outros. Esse trabalho seria publicado em livro, no México, com o título de El Periodismo impresso y la Teoría General de los Sistemas: un modelo didático.

Ao contrário do modelo predominante, contaminado pelos paradigmas do reducionismo, do mecanicismo e do materialismo, excessivamente estáticos e simplistas, o modelo sistêmico propõe uma visão integrada, dinâmica. Um dos seus corolários é que a soma das partes não é igual ao todo, como se apregoa na visão cartesiano/reducionista, mas que no conjunto surgem características diferenciadas, não presentes nos indivíduos isolados de um determinado grupo sob escrutínio. Outro é que os acontecimentos visíveis são fruto de um processo que se desencadeia muito antes de sua eclosão social, podendo contribuir para seu surgimento fatores e forças sutis, pouco explícitos ou até mesmo inteiramente ocultos a um olhar superficial e ligeiro.

A abordagem sistêmica mostrou-me então que a prisão ao fato – a ocorrência social manifestada – como pedra angular da ação jornalística só serve quando o objetivo é meramente registrar um acontecimento. Quando, porém, o propósito é estabelecer relações de causa e efeito, o olhar da mídia convencional só alcança a linha d`água onde se vê uma grande pedra de gelo flutuando, deixando de perceber a presença muito mais ameaçadora, à frente e submersa diante do Titanic, da enorme montanha marítima da qual faz parte, o iceberg.

Revelou-me que o foco isolado do jornalismo comum nos indivíduos da história deixa de localizar o contexto temporal, social e cultural do qual fazem parte, cujas ingerências diretas ou indiretas moldam as ações desses personagens. Indicou-me que o olhar temporal limitado à atualidade falha ao não se estender o suficientemente para trás, em busca das raízes dinâmicas dos fatos, muitas vezes escondidas em tempo distante, nem encontra sinais de seus desdobramentos futuros, por uma atitude conservadora, reativa, aprisionada no presente. Mostrou-me principalmente que a fragmentação do olhar, inerente à abordagem reducionista, faz o repórter perder a noção de conjunto dos fenômenos sociais e humanos, ficando portanto limitado ao alcance raquítico para uma compreensão mais apurada da realidade.

Desse trabalhou resultou então o primeiro alicerce teórico/conceitual para o que seria futuramente a proposta do Jornalismo Literário Avançado: a visão sistêmica.

Ora, se o Jornalismo Literário tem como propósito compreender a realidade – assim entendemos, enquanto cabe ao jornalismo noticioso convencional informar, simplesmente -, em lugar da leitura efêmera e rápida que faz a imprensa diária, e em lugar da explicação racionalista apressada ou opinativa presente na maior parte da produção jornalística convencional, cabe a essa modalidade afastar-se desse papel importante, mas limitado, indo ao encontro de sua própria missão nobre. Essa consiste em ler o real de maneira ampla, buscando contextos, evitando julgamentos (especialmente os apressados), caminhando para a conquista de discernimento amplo e pela elucidação dos acontecimentos e situações sociais sobre os quais debruça o seu olhar.

Não cabe ao Jornalismo Literário limitar-se, tampouco, à estreita ligação linear de causa-efeito que o melhor do jornalismo convencional procura estabelecer, à caça de explicações para o real. Louvável iniciativa da imprensa convencional, em alguns casos, mas insuficiente para o Jornalismo Literário, que ousa mais, embarca em horizontes intelectuais de maior envergadura.

As explicações são ainda processos intelectuais pobres para uma visão plena de realidade. Em pleno século XXI – assim como acontecia na última década do século XX, quando formulei o primeiro patamar da proposta Jornalismo Literário Avançado – essa afirmação pode ser encarada de forma mais categórica, pois avanços em diversos campos do conhecimento – especialmente na esfera científica – têm revolucionado nossa perspectiva de entendimento da realidade.

O jornalismo não é atividade isolada do restante do contexto cultural. Como mostra a abordagem sistêmica, é um sistema – isto é, conjunto integrado por partes componentes que operam dinamicamente – inserido num ambiente – os demais sistemas sociais, culturais, políticos, econômicos e de outra natureza eventual – com o qual se relaciona, do qual se alimenta e para o qual produz insumos que por sua vez provocam sua própria retroalimentação. Assim, o jornalismo pode – e tem realizado isso ao longo da história, mesmo que de maneira empírica, improvisada ou parcial – enriquecer-se intelectualmente com avanços do conhecimento, tanto na área científica quanto nos outros campos clássicos de compreensão da realidade desenvolvido pela civilização ao longo dos tempos.

No território específico do Jornalismo Literário, ilustra essa aproximação intercultural o fato de que no final do século XIX a nascente ciência da sociologia contribuiu para o aperfeiçoamento intelectual da modalidade também em sua fase de expansão inicial. Particularmente a chamada Escola de Chicago e o fato de tanto sociólogos quanto jornalistas praticarem narrativas do real voltadas ao retrato de tipos humanos e contextos grupais, assim como a situação de sociólogos da academia também escreverem para jornais – inclusive como repórteres – ou de jornalistas atuarem na academia, tudo isso gerou uma fermentação de aperfeiçoamento mútuo nessas duas frentes de expressão da realidade.

Disso resultou a incorporação da técnica de captação de realidade conhecida como observação participante, trazida dessa ciência. A essa influência, o Jornalismo Literário acrescentou na sua origem a contribuição peculiar proveniente de outra aproximação entre uma arte narrativa – no caso a literatura – e a sociologia, que é o realismo social. Derivada deste, por sua vez, está a escola literária do naturalismo, universalmente representada pela sua maior figura, Émile Zola. Essa vertente literária, mais a escola filosófica do positivismo, formaram o arsenal paradigmático com o qual Euclides da Cunha produziu seu fabuloso Os Sertões, trabalho que considero primeiro grande obra de Jornalismo Literário – em sua fase embrionária entre nós – brasileiro.

Se há essa tradição histórica de renovação do Jornalismo Literário pelo diálogo com outras áreas do saber, não haveria motivo para que eu refutasse o avanço de minha própria contribuição, proativamente, incorporando, a meu turno, propostas de ponta das fronteiras de vanguarda do conhecimento atual. Assim, à visão sistêmica, seguiu-se a absorção do conceito de complexidade, complementando-a, solidificando-a.

O olhar da mídia convencional é simplista, linear, raso, temporalmente frágil. O retrocesso temporal na busca de raízes antigas dos fenômenos sociais é tímido, assim como a postura reativa pouco avança para a consideração de desdobramentos ou consequências futuras de um acontecimento. As explicações tendem a ser mecanicistas, lineares, frágeis. Para mencionar uma situação na ordem do dia da cobertura massiva da mídia, quando escrevo este artigo, o caso de corrupção provável envolvendo o senador Demóstenes Torres é visto, na maioria dos veículos, como resultante de uma postura moralmente condenável do indivíduo, não como parte de um processo sistêmico altamente contaminado em que a alta política, os grandes negócios, os valores – ou falta deles, melhor colocando – individuais e o caráter – novamente, a falta de – das pessoas investidas de cargos públicos estão banhados por um câncer social endêmico bastante disseminado – em metástase social, digamos assim – nos últimos tempos, mas que parecem existir como praga neste país desde que a corte real portuguesa fugiu de Napoleão para se estabelecer no Rio de Janeiro.

A complexidade, tal qual definida por Edgar Morin, por exemplo, rejeita o paradigma da simplificação, avança para o entendimento de que tudo só pode ser compreendido tendo-se em mente a visão do todo, dos conjuntos organizados da realidade. Se o Jornalismo Literário pretende entregar aos receptores de sua mensagem uma leitura compreensiva do real, atualizada, em sintonia com os avanços mais importantes do conhecimento, precisa absorver essa contribuição.
Esse conceito implica em que a realidade – sobre a qual, em última instância, o Jornalismo Literário lança seus instrumentos de percepção – envolve dinamicamente diferentes níveis, ao mesmo tempo que exige distintos modelos de observação e entendimento. Ao contrário do paradigma simplificador, que se apoia no modelo da máquina – daí portanto o mecanicismo e a artificialização de tudo sob o olhar da imprensa convencional – para explicar tudo, o paradigma da complexidade considera a realidade um sistema natural, com distintas respostas aos diferentes desafios do seu ambiente. Assim, não se pode igualmente abordar narrativamente uma situação social como se aborda a descrição de uma linha de montagem na indústria automobilística, assim como não se consegue de fato aprofundar-se na compreensão do que levou um time de futebol à conquista da Copa do Mundo se considerarmos tudo como equivalente a uma máquina e seu funcionamento. Cada situação exige do observador – está implícito neste artigo que a tarefa do Jornalismo Literário reside em descrever a realidade da maneira a mais ampla, integrada e dinâmica possível – uma resposta intrinsecamente adequada ao que constata no sistema natural que observa, e não a reprodução de um modelo rígido, genericamente aplicado a qualquer coisa, seja a descrição de uma operação de trem no metrô de São Paulo, seja a relação entre as tempestades solares e a navegação aérea baseada em satélites no planeta Terra.

Do mesmo modo, não se quer um olhar preso aos fatos (que em si pouco representam quando a intenção é compreender um dinamismo integrado de forças em ação), mas sim uma percepção iluminada que relaciona os fatos a padrões de comportamento dos conjuntos sistêmicos sob observação.

Na proposta do Jornalismo Literário Avançado, o conceito de realidade é fundamental. Para compreendê-lo, as contribuições da visão sistêmica e do paradigma da complexidade aliam-se a outra fonte na qual fui buscar suporte: a física quântica. Apoiei-me num dos mais renomados de seus pesquisadores, David Bohm, para sugerir o aproveitamento de uma de suas formulações como baliza.

Para esse extraordinário cientista de visão – nascido nos Estados Unidos, onde desenvolveu sua carreira, mas chegando a atuar um tempo na Universidade de São Paulo como professor visitante -, a realidade não é constituída apenas pelo mundo objetivo, físico, visível e captável pelos sentidos comuns de percepção. O mundo físico é apenas uma das dimensões de realidade, a que Bohm denomina de ordem explícita. Há múltiplas dimensões do real, para Bohm, as demais enquadráveis sob a concepção de ordem implícita.

A essa abordagem seguem-se formulações igualmente ousadas por outros físicos quânticos popularizadores dos achados de sua ciência, transportando-os de fora dos laboratórios herméticos para o pátio aberto da sociedade como um todo, como fazem Fritjof Capra e Amit Goswami, por exemplo.

Essas abordagens, trazidas para o âmbito do Jornalismo Literário, conduziram a proposta da sua versão de fronteira para o terreno epistemológico da transdisciplinaridade, outra de suas bases. Essa proposta é a mais avançada e aberta da ciência, isenta da arrogância e da inteligência cega que durante muito tempo configuraram os paradigmas condutores do fazer científico. Concebe a ideia de que a realidade é muito ampla e complexa para o entendimento exclusivo sob os parâmetros científicos, que também possuem, obviamente, seus vieses e suas falácias de leitura. Daí define que a melhor postura para a compreensão do real consiste no diálogo em igual linha de importância da ciência, da arte, das tradições (isto é, dos conhecimentos não convencionais isentos dos parâmetros lógicos da cultura euro-centrada que marca a sociedade racionalista do nosso tempo na maioria dos países do mundo) e das religiões, essas consideradas não exclusivamente sob a ótica das organizações religiosas estruturadas institucionalmente, mas como sinônimos de sistemas que foram capazes de gerar leituras de mundo consideravelmente significativas.

O ideário do Jornalismo Literário Avançado prima, assim, por um desejo de abandono de qualquer leitura preconceituosa do real. Em lugar de se ater exclusivamente a um viés racionalista de compreensão, procura aquilatar as situações e acontecimentos em pauta sob um modo de entendimento que começa a partir dos seus personagens. Aliás, para essa modalidade narrativa de não ficção não existem fontes, mas sim personagens. As pessoas são personagens da vida real.

Mas o que é o ser humano? Em que plataforma reside o amparo do jornalismo para tratar as pessoas em suas matérias?

É fácil constatar que na maioria das vezes a visão é mecanicista, pouco dinâmica, reduzida a um aspecto apenas da vida do personagem contemplado na matéria jornalística. Quando muito, o enfoque apresenta um arremedo de entendimento – raso – longinquamente associado a um algum conceito psicanalítico. O indivíduo não é visto como um todo orgânico, complexo, mas como alguém geralmente limitado a um papel sócio único. Isso fica bem evidente nas matérias rotuladas de perfil, arremedo de formato narrativo nobre do Jornalismo Literário que, absorvido pela prática convencional, perde seu propósito. Geralmente centrado em celebridades, o perfil comum realça uma faceta social pela qual o personagem é conhecido, destacando trivialidades pouco significativas para se compreender aquele ser humano para além da máscara social específica em foco.

Ciente de que um dos fundamentos filosóficos do Jornalismo Literário é a humanização e que portanto o ser humano é o elemento central da totalidade quase absoluta das matérias, o Avançado não poderia ficar restrito a esse enfoque miseravelmente pobre do ser humano.

Por este motivo busquei aproximação à psicologia humanista, corrente mais avançada do que a psicanálise ortodoxa, ciente de sua natureza como formato moderno de compreensão do ser humano. Para além de seu uso terapêutico, a psicologia humanista é uma ciência aplicável em outras áreas da atividade humana, servindo de instrumento iluminador sobre a espécie humana e os indivíduos que a compõem.

Particularmente relevante nesse aspecto é a psicologia profunda, ou junguiana, movimento pioneiro, na psicologia humanista, iniciado pelo grande terapeuta e extraordinário homem de ciência Carl Gustav Jung. Associei-me a essa linha de pensamento, depois caminhando por outros campos para incluir no Jornalismo Literário Avançado uma premissa fundante, derivada daí e do trabalho pioneira da livre pensadora norte-americana Jean Houston: o ser humano é a uma criatura multidimensional que navega simultânea e interdependentemente por quatro oceanos integrados de realidade. Estes oceanos são o físico/objetivo, o psicológico, o simbólico e o espiritual.

Enquanto a imprensa cotidiana limita-se quase que exclusivamente ao universo físico das figuras humanas, o Jornalismo Literário Avançado tem a incumbência incumbência de buscar captar, tanto quanto possível, elementos significativas das diversas esferas dos fenômenos de existência que constituem o indivíduo. A física quântica – associada neste ponto ao estudo da psique, todo o arsenal do mundo interno da pessoa abordado pela psicologia – tem mostrado que a realidade objetiva é fruto de um processo dinâmico de manifestação que começa nos planos sutis – na ordem implícita de David Bohm -, tendo como ponto de passagem entre os planos o chamado campo de energia ponto zero. Assim, uma reportagem verdadeiramente séria de jornalismo esportivo não pode apontar a causa da vitória de um campeão olímpico como sendo apenas seu treinamento mais apurado dos que os competidores. Uma vitória importante no esporte – assim como na vida ou em qualquer outro patamar da sociedade – deve-se a um conjunto complexo de fatores, onde entram questões como a atitude mental do atleta, suas crenças e valores internos, as crenças coletivas e projeções dos grupos sociais interessados naquela modalidade, naquele profissional e na competição específica sob holofote da sociedade (e também portanto da mídia).

Jung nos trouxe o conceito de inconsciente coletivo. Ou seja, se queremos de fato colocar em contexto uma compreensão da vitória – ou derrota – marcante de alguém em qualquer frente de ação da vida, precisamos situar sua história no contexto do mundo coletivo inconsciente ao qual pertence. Quando olhamos o êxito estrondoso de algum atleta de esportes competitivos de popularidade massiva, é fácil ligar sua história à projeção ou interação coletiva que cria uma força multiplicadora invisível dos esforços rumo ao êxito. O atleta se identifica com a pátria, ou com um grupo social específico, ou pelo menos com a família de modo extremamente vigoroso, no sentido psicológico, extraído daí forças para superar obstáculos.

Trouxe-nos também a ideia revolucionária da sincronicidade, o princípio de que há relações significativas entre fatores externos (do mundo objetivo) e internos (do universo interno psíquico do indivíduo), dando sentido a episódios marcantes das histórias das pessoas. Deste modo, compreender os motivos da ascensão ao sucesso de uma nova pop star requer do jornalista/escritor subir seu raciocínio a uma plataforma de discernimento superior ao racionalismo preso aos aspectos lógicos, lineares e objetivos, pois é notável comprovar, nas histórias de vidas, a importância desses fatores sincrônicos, em muitos casos.

Os conceitos de sincronicidade e inconsciente coletivo, de Jung, são associados no Jornalismo Literário Avançado à radical proposta dos campos morfogenéticos, teoria formulada inicialmente na década de 1930, reposicionada com maior sucesso nas duas últimas décadas do século passado e até nossos dias pelo cientista inglês Rupert Sheldrake. Sistêmica e complexa por natureza, a teoria estabelece que a Natureza cria, armazena e dissemina conhecimentos novos entre membros de uma mesma espécie, fazendo navegar pelo inconsciente coletivo, no caso humano, conteúdos não verbais que representam saberes armazenados ao longo do tempo, distribuídos por canais sutis de comunicação – como o sonho e a sincronicidade – que atravessam barreiras tempo/espaciais.

Os campos morfogenéticos ajudam a entender, por exemplo, o papel dos rituais – fenômenos eminentemente subjetivos – em processos de ação coletiva que alteram condições sociais concretas. Pesquisas do Instituto de Ciências Noéticas – www.ions.org – e de outros centros de estudos científicos de vanguarda mostram a sugestiva relação entre grupos reunidos com o objetivo de gerar uma atmosfera psicológica de paz através de orações, rezas, meditações ou simples intenção e a diminuição de incidência de violências, num dado período, em uma grande cidade.

Posto está, implicitamente, então, que ao produzir perfis, ensaios pessoais, biografias e outros formatos narrativos que colocam em absoluto primeiro plano as histórias de pessoas, o Jornalismo Literário Avançado pode ousar transcender o nível raso reducionista das leituras corriqueiras, ascendendo voo para uma reconfiguração pública da compreensão do ser humano, representada pelas histórias de personagens famosos ou anônimos que fazem parte do seu repertório.

Esta compreensão amplia-se com a incorporação dos conceitos de evolução, consciência e níveis mentais integrados. O primeiro, abrigado pela leitura transdisciplinar, sugere que todos os seres humanos são impulsionados por um processo intrínseco de aperfeiçoamento e expansão da experiência do viver e do seu entendimento de si mesmos, assim como da realidade circundante. Esse processo, a seu turno, alia-se ao conceito de que somos dotados de consciência – noção de nós próprios, assim como de tudo o mais que existe e da relação dinâmica de interdependência entre tudo – e de que essa é pressionada pela dinâmica da vida a se expandir cada vez mais. A ideia de integração de níveis mentais múltiplos significa, de fato, a existência de consciência em diversas camadas da existência – e não somente no plano humano -, assim como da comunicação integrativa e interativa entre elas.

Do campo da psicologia junguiana extrai-se, ainda, os conceitos de ego, Self e individuação. Na verdade, diz a psicologia humanista, nós seres humanos não somos indivíduos plenos, no geral, pois somos geridos dinamicamente, no mundo psíquico, por muitos eus, muitas forças, muitos conteúdos inconscientes – na maioria – e alguns conscientes. Esses diversos eus têm pautas, propósitos e desejos variados, frequentemente conflitantes. Refletem também nossa luz – o conjunto de conteúdos psíquicos que aceitamos em nós próprios – e nossa sombra – o conteúdo oculto que abominamos, sem muita ciência deles próprios -, surgindo daí os conflitos motores do desenvolvimento da personalidade. E são os conflitos, claro, os motores das narrativas. No caso do Jornalismo Literário Avançado, porém, o nível de abordagem dos conflitos envolvendo os personagens ultrapassa o mundo objetivo, concreto, vê com igual valor os acontecimentos sutis em oposição, assim como a interação entre conteúdos dos dois mundos.

O que segura o mundo psíquico convulsionado em relativa ordem funcional é o ego. Organizador da psique, pode elucidar, numa matéria jornalística, o comportamento da celebridade bem-sucedida que, graças a um ego forte – isto é, à noção clara de auto identidade, propósito e habilidades – supera obstáculos para obter sucesso.

Tornando o panorama ainda mais complexo, contudo, a psicologia junguiana mostra que também temos outro centro organizador da barafunda interna de eus, o Self, cujo propósito pode ser radicalmente distinto do ego. Internamente então instala-se o conflito, dinâmica psíquica que pode iluminar a compreensão do grande drama interno dos seres humanos ao longo de suas histórias individuais, tramas que estão intimamente conectadas à ideia de evolução, meta sem fim visível que levaria à individuação, situação em que o ser conquista definitivamente um grau elevado de harmonia entre os seus conteúdos conflitantes internos, ampliando sua consciência de si mesmo, dos demais, da existência e do seu papel no jogo dinâmico da vida em todos os planos de manifestação.

Sob esse foco, um perfil em Jornalismo Literário Avançado transcende o plano meramente social das atuações externas dos personagens. Mergulha no universo interno onde transcorre uma história igualmente dramática e para a qual o escritor da vida real abre suas comportas de percepção, localizando o enredo e o tema em desenvolvimento interativo pelos níveis integrados de realidade.

Este é o escopo inicial do Jornalismo Literário Avançado.
Sua proposta de vanguarda não é apenas teórico- especulativa. Ao contrário, tem forte conotação prática, pois avanços efetivos já foram conquistados no Brasil com a incorporação de instrumentos aplicados que ajudam a transformar a teoria em prática. Essa história será objeto de um próximo artigo.

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