Memória do Futuro: Jornalismo Literário Avançado no século XXI – 2

Memória do Futuro: Jornalismo Literário Avançado no século XXI – 2

Segunda parte de um artigo pleno da proposta conceitual do Jornalismo Literário Avançado, desenvolvida por este autor, o texto completa a apresentação de suas bases teórico/conceituais. O tom é de uma crônica histórico-acadêmica, pois associada a essa perspectiva, onde se aborda a questão epistemológica dos modelos de realidade que moldam o exercício da narrativa jornalística, há a menção ao histórico de iniciatvas de aplicação prática da proposta.

Igualmente são destacados o desenvolvimento do método de redação espontânea Escrita Total e a adaptação do método de estruturação de narrativas Jornada do Herói como partes integrantes importantes do JLA. Sugere-se igualmente desdobramentos futuros.

Inovações conceituais levadas à prática

A atitude básica que norteava minha ação acadêmica centrada em Jornalismo Literário consistia de um lado no resgate e mapeamento da tradição brasileira e internacional dessa modalidade narrativa de não ficção. De outro, dizia respeito ao desenvolvimento de propostas proativas que a renovassem, contribuindo para sua adaptação dinâmica a novos ambientes culturais resultantes da natural transformação que o tempo impõe às sociedades.

Parecia-me muito cômodo que grande parte da produção acadêmica universitária, especialmente na área de Humanas, se caracterizasse por uma atitude reativa, limitando-se a analisar situações já manifestadas no espaço social. Minha visão era baseada na ideia de que a produção acadêmica pode se libertar dessa dependência, centrando seu foco não no passado das realidades manifestadas, mas sim conduzindo-o para o futuro e para a co-construção da realidade possível. Igualmente, buscando a harmonia entre teoria e prática, parecia-me interessante que a academia gerasse conhecimento novo aplicável e o compartilhasse com a sociedade externa aos muros universitários, contribuindo assim, efetivamente, para o avanço das práticas profissionais.

Parecia-me evidente que em vários campos do conhecimento estava ocorrendo uma transformação acelerada de grande potencial revolucionário, do ponto de vista epistemológico. O conjunto de paradigmas formados pelos modelos mecanicistas, materialistas, cartesianos, reducionistas revelava-se cada vez menos hábil para expressar a realidade cada vez mais complexa da célere civilização de nosso tempo. Mas essa transformação não me parecia chegar ao jornalismo, nem mesmo ao Jornalismo Literário, ainda estacionado nos velhos paradigmas do século XIX.

Começou a interessar-me sobremaneira a transdisciplinaridade, proposta epistemológica tal qual expressa por expoentes internacionais como Edgar Morin e Basarab Nicolescu e aqui no Brasil por Ubiratan D´Ambrosio. O direcionamento dessa abordagem, colocando num mesmo plano de diálogo as ciências, as artes, a filosofia e as tradições soava-me muito bem. A fertilização mútua entre esses grandes campos de conhecimento atraía-me, parecendo cair como luva no árduo desafio de se ler o real através de lentes da complexidade, onde são muitos os fatores interativos que compõem processual e dinamicamente a realidade.

A importância disso é que, para mim, o jornalismo é um campo de conhecimento. Especialmente o Jornalismo Literário, que carrega implicitamente em sua razão de ser o propósito de expressar a realidade social tendo como fio condutor a figura humana. O bom praticante da modalidade é um pesquisador de nível comparável ao cientista social, no que se refere à reprodução dessa realidade social, e equivalente ao bom artista narrativo – o cineasta, o dramaturgo, o telenovelista, o romancista -, no que tange a arqueologia da alma humana. Mais do que uma simples reprodução referencial do real, o Jornalismo Literário está em busca da compreensão profunda, contextualizada do nosso mundo contemporâneo.

Diferenciando-o do cientista ou do artista, porém, o autor da modalidade tem sua especificidade. Faz seu trabalho de leitura investigativa mergulhando visceralmente no real. Vai a campo, observa, interage, capta o significado da rede de fatores e forças que configuram um momento e uma situação de realidade. Interpreta. E apresenta sua reprodução desse real de um modo narrativo peculiar. Tem a habilidade literária do bom escritor de ficção, mas adaptada à narrativa de não ficção ou ao ensaio de não ficção. À sua disposição, um arsenal de formas narrativas – o perfil, a reportagem temática, o texto de viagem ou de memórias, até mesmo a biografia – e o recurso muito peculiar do ensaio pessoal.

Na medida em que essa imersão no real tem como fio condutor o ser humano – é através de personagens reais, suas ações e seus mundos, que o autor conduz seu texto -, fica evidente que conhecê-lo bem é fundamental para o jornalista literário. Como, ao mesmo tempo, precisa investigar o real de frente e com intensidade, necessita depurar seus instrumentos de apreensão da realidade.

Até pouco tempo, havia um único instrumento dessa apreensão estimulado nos bancos universitários, geralmente, a abordagem puramente lógica, racional. Mas a pessoa humana, mostram os novos paradigmas, não é exclusivamente um pensador, como tentou nos fazer acreditar durante muito tempo o paradigma cartesiano rasteiro. Somos também seres emocionais e intuitivos, além de corporais e espirituais, arquetípicos e simbólicos. Paradoxalmente, em adendo, no intuito de melhor entender o outro, com o objetivo de melhor sobre ele escrever, o autor precisa simultaneamente mergulhar para dentro de si mesmo, ampliar o autoconhecimento, saber algo de sua psique, trazer consciência para o seu mundo interno e para o externo.

Segui, por isso, o caminho de procura de elementos das correntes que me pareciam mais arejadas e de vanguarda, na Psicologia, para incorporá-los como instrumentos de trabalho ao Jornalismo Literário Avançado, conforme abordado na primeira parte deste artigo, em edição anterior desta pubicação. À incorporação de conteúdos da Psicologia seguiu-se uma absorção de elementos da História. A abordagem histórica da realidade centra-se na questão do tempo e esse igualmente é relevante para o Jornalismo Literário, pois a busca da compreensão de significados passa pelo estabelecimento de conexões dinâmicas que se desdobram temporalmente. Se o propósito é lançar luzes de compreensão sobre fatos, situações e configurações sociais e humanas inseridas na dimensão temporal da contemporaneidade, torna-se saudável apoiar-se em conceitos que apontem de maneira mais sugestiva do que o racionalismo estreito da historiografia convencional ou do jornalismo raso possibilidades de relações significativas entre o presente e o passado.

Foi deste modo pertinente absorver o conceito de tempo do historiador francês Fernand Braudel, com sua categorização dos tempos de curta, média e longa duração. O primeiro refere-se ao tempo presente, dos indivíduos, dos acontecimentos atuais. É nele que mergulha o jornalista literário à caça do entendimento da realidade, espelhando a situação que encontra através dos seus personagens reais. Sobre eles, porém, incidem forças concomitantes de média duração, correspondentes à temporalidade de existência de grupos sociais e valores culturais que ultrapassam o tempo de vida de indivíduos, perdurando por décadas, mesmo séculos; a sucessão no poder de membros de diversas gerações de uma mesma dinastia monárquica condiciona de algum modo a realidade de uma nação por muito tempo e muito além do que a duração de uma vida individual específica sob escrutínio de um historiador. E incidem as condições de longa duração, correspondentes especialmente à conformação geográfica do espaço contextual onde vivem os personagens da história; se o jornalista literário busca compreender um andino de hoje residente nas altas montanhas do Peru, tem de prestar atenção nos possíveis efeitos dos Andes na formação do temperamento do indivíduo, alguns desses efeitos podendo ser iguais aos provocados em seus antepassados de cem anos atrás, mesmo que agora tenha acesso à internet e ao telefone celular.

O método de Braudel alia tempo ao espaço e história a ritmos. Alia também a mentalidades. Quer dizer, propõe integrar fatores objetivos e subjetivos, encarar o evento histórico como associado a um dinamismo complexo.

Para o jornalista literário, significa descobrir, no personagem sob seu olhar, a existência, no nivel psíquico, de conteúdos de realidade que procedem de diferentes dimensões temporais; significa descobrir que por trás da fachada moderna de um Fernando Collor de Mello na história recente da República, cosmopolita e antenado com o mundo, habitava um arcaico coronel dos tempos feudais do Brasil colônia, cuja primeira ação ao chegar ao mais alto cargo do poder político neste país foi cometer o execrável desatino anti-democrático de congelar os fundos financeiros de milhões de brasileiros, especuladores e aposentados igualmente afetados em proporções que provocaram dramas e tragédias humanas inesquecíveis.

A contribuição seguinte do campo historiográfico foi a incorporação do conceito de história imediata. Diz respeito à história que se desdobra no presente, cujo alcance e cujo significado talvez não se possa compreender totalmente ainda, mas se pode vislumbrar sinais relevantes. Como o jornalista literário está atrás da profundidade de compreensão, evitando permanecer aprisionado na superfície rasteira dos fatos noticiosos diários, é conveniente habituar-se a pensar de um modo distinto, lançando sobre o presente questionamentos que o permitam detetar não simplesmente fatos num evento presente, mas sim padrões processuais de movimentos dinâmicos que lhe dêem um sentido de maior alcance temporal para dos acontecimentos e das situações cotidianas.

Outro complemento dessa abordagem, cuja raíz mais antiga se atribui também à mesma corrente historiográfica francesa que originaria o trabalho proeminente de Fernand Braudel, é conceder importância à história de anônimos. Ao contrário da historiografia clássica, muito focada nas elites, a corrente da história imediata coloca em primeiro plano também as classes socialmente periféricas. Naturalmente, essas duas contribuições – a de educação do pensamento para um olhar temporalmente mais elástico sobre o presente, a de se dar atenção a figuras humanas socialmente distantes dos centros elitistas de uma sociedade -, essencialmente não estranhas ao jornalismo, ajudam a enriquecer, mesmo assim, a postura que convém formar a base conceitual do jornalista literário.

A terceira e última contribuição estimulada a partir da historiografia consistiu num diálogo metodológico com a história oral. O que me movia era analisar que procedimentos metodológicos dessa corrente histórica poderiam ser úteis ao Jornalismo Literário Avançado e, em contrapartida, que conteúdos nossos, de método, poderiam ser úteis aos nossos colegas historiadores, num intercâmbio mutuamente nutritivo. Estudos preliminares, especialmente calcados em obras de Ecléa Bosi e Paul Thompson, fizeram-me estimular alunos e orientandos jornalistas a cursarem disciplinas de pós-graduação em história oral para examinarem detidamente esse terreno de um diálogo possível.

Um dos resultados consistentes foi a orientação da Tese de Doutorado de Alex Criado, Falares: A Oralidade Como Elemento Construtor da Grande-Reportagem, defendida na Universidade de São Paulo em 2006. Dali veio uma certa atitude de se utilizar a oralidade mais substancialmente como um recurso narrativo possível para o jornalista literário, mas dentro de um contexto de edição estilística que julgamos mais dinâmico, criativo e eficiente do que o padrão normalmente utilizado em história oral.

Essas contribuições, procedentes da Psicologia e da História, preenchiam complementarmente uma parte do quadro em construção do Jornalismo Literário Avançado. Mas não eram suficientes. Faltava um mergulho mais diretamente direcionado ao âmago de um lago epistemológico que era o confronto com abordagens essencialmente voltadas ao cerne do conceito de realidade. E esse cerne remeteria inevitalmente à questão adicional da consciência e essa, por sua vez, ao princípio da evolução.

A principal porta de acesso a essas duas questões foi a física quântica, e mais apropriadamente ainda o entendimento metafórico de alguns dos seus princípios de aplicação universal, conforme apresentados na parte anterior do artigo.

O JLA incorpora esses e outros princípios surgidos desse trançar de avanços formidáveis em distintas áreas de saberes. O que deve guiar o raciocínio do jornalista literário ao examinar uma relação de causa e efeito entre fatos de um acontecimento, por exemplo, não pode ser mais o determinismo cego do princípio da certeza estabelecido pela agora limitada física newtoniana, mas sim o princípio da incerteza da física quântica. Não trabalha mais com a certeza falsa que os paradigmas convencionais vendem como verdadeira, mas sim procura familiarizar-se com o princípio da probabilidade.

A ciência antiga, convencional, arrogantemente declara que conhecidos os dados de uma determinada realidade no passado, sabe prever exatamente como se repitirá no futuro. Mas o pensamento probabilístico não se limita a esse raciocíno pobre e potencialmente enviesado; aceita a ideia da extrema criatividade probabilística do universo ao gerar acontecimentos. Além do mais, não se apoia na relação linear e reduzida de causa e efeito, mas sim procura o campo processual de relações sistêmicas e complexas que ajudam a compreender um acontecimento, uma situação, um comportamento humano.

Essa abordagem abriu espaço, no JLA, para se procurar, na cobertura interpretativa do real, não apenas os elementos factuais de um acontecimento. Os fatos registram uma ocorrência, mas não ajudam a entendê-lo. O significado das coisas não está na sua realidade material, concreta, mas no simbolismo sutil que damos a elas. Assim, foi possível a este autor orientar também na USP a Dissertação de Mestrado de Ana Taís Portanova Barros, A Função Mágica no Fazer Jornalístico: Um Estudo de Caso, em 2001, que apontou o quanto do conteúdo simbólico é desprezado pelo jornalismo cotidiano, mas o quanto desse conteúdo está presente em boa parte da população leitora que, de fato, pode ler o real com muito mais acuidade – pois naturalmente complexa e orgânica – do que a ótica reduzida ao racional estreito utilizada pela maior parte da imprensa cotidiana. A Dissertação seria posteriormente publicada em formato de livro.

Os avanços progressivos que essas incorporações ao ideário do JLA proporcionaram foram notáveis, mas ainda assim insuficientes para o horizonte que este autor vislumbrava. Uma questão emergente é que essa absorção de conhecimento epistemológico de vanguarda trazia como contribuição complementar uma constatação que crescia com evidências empíricas: a realidade é também coconstrução individual e coletiva, para ela contribuimos consciente ou inconscientemente.

A interferência do pensamento, da mente humana e da mente coletiva (ideia associada ao conceito de inconsciente coletivo de Jung, por exemplo) sobre a realidade objetiva tem sido estudada nos últimos anos por pesquisadores de vanguarda. Rupert Sheldrake, da teoria dos campos morfogenéticos, por exemplo, tem sugerido como o ritual coletivo das orações pode, de fato, provocar resultados verificáveis quando esses procedimentos são direcionados em benefício de alguém doente. Um número cada vez maior de experimentos têm demonstrado como, de fato, a mente direcionada propositalmente a um objetivo focalizado pode interferir de algum modo na concretização de resultados visíveis.

Os relatos de experimentos pioneiros dessa espécie levaram este autor a levantar casos, na literatura científica de vanguarda, como a produzida pelo Instituto de Ciências Noéticas – www.ions.org -, de novos procedimentos neurológicos aplicados a situações específicas de melhoria do desempenho humano. A exploração especulativa de novas possibilidades que poderiam ser acrescidas ao escopo do JLA o levaram a travar contato com a teoria dos hemisférios cerebrais e depois com o conceito de neuroplasticidade.

A primeira tem a ver com o estudo da lateralidade cerebral, ou da especialização funcional dos hemisférios cerbrais, que levou Roger Sperry a ser um dos ganhadores do Prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia de 1981. A segunda mostra a extrema versatilidade do cerébro humano a responder a estímulos e desafios e a se adaptar flexivemente a novas circunstâncias, mesmo quando há problemas de perda neural por doença, acidente ou outro fator, como o envelhecimento. A ciência acreditava, até um certo momento recente, que as células cerebrais não se renovavam, ao contrário de outras células do corpo. Por isso, a perda de memória não tinha retorno, por exemplo. Hoje já se sabe que sim, as células nervosas podem se renovar.

O que essa ciência de ponta foi demonstrado é que mediante estímulos adequados – como o contar histórias, o ouvir boa música, o fazer determinados exercícios físicos estimulam a recuperação de capacidade mental perdida e antecipam favoravelmente a resposta do indivíduo no aprendizado de novos novos domínios ou na melhoria do desempenho.

Narrativa e cocriação da realidade

Para que serviria isto no JLA?
Primeiro, para se constituir, simplesmente, num campo temático de pautas interessantíssimas, potencialmente alinhadas a uma função nobre que o JLA pode desempenhar: contribuir para a cocriação de uma realidade social e humana melhor, mais saudável do que a que temos hoje, mais condizente com as probabilidades de melhoria da qualidade de vida que esses estudos de ponta sugerem. Segundo, para nutrir os jornalistas literários com uma fonte de recursos, procedimentos e princípios que os permitam produzir narrativas e ensaios com um alto poder de expressão avançada, compatível com essa visão nova de mundo que está emergindo nas fronteiras de vanguarda do saber humano.

O propósito da cocriação está alinhado com a ideia de que parcialmente, que seja, podemos interferir na realidade externa a partir do uso consciente de intenções desenhadas mentalmente.

Essa ideia está alinhada ao conceito transdisciplinar do princípio da evolução. Simplificando, os indivíduos e a coletividade humana são movidos por um impulso inerente, instalado nas entranhas de seus seres pela própria Natureza, de evoluirem. Isto é, de ganharem graus de consciência cada vez maior de si mesmos, dos outros, do entorno, das relações dinâmicas estabelecidas entre todos os elementos da existência. O impulso da evolução contrapõe-se a outra polaridade interna, dos indivíduos, que é o de involuirem, de se estagnarem no processo de ampliação de consciência.

Essa expansão de consciência estaria atrelada às visões de mundo, aos parâmetros de realidade, às crenças e às verdades que o indivíduo e os grupos humanos abrigam. Esse abrigar, por sua vez, tem muito a ver com aquilo que o indivíduo e os grupos sociais internalizam, absorvendo os conceitos implícitos de realidade que circulam no ambiente cultural de sua época, de sua sociedade, de seu mundo. Boa parte desses modelos implícitos de realidade são distribuídos pelos meios de comunicação de massa convencionais e, hoje em dia, igualmente pela mídia social.

Isso quer dizer que, no âmbito do JLA, é mandatório o praticante ter pelo menos uma certa noção de que o ato comunicativo público provoca potencialmente algum efeito na mente individual do receptor e na mente coletiva dos receptores da mensagem. Adaptando para nossa área estudos do efeito da literatura sobre o leitor, realizados no passado por Dante Moreira Leite sob a ótica da psicologia, pode-se compreender como a mensagem gerada pela arte literária pode dispor ao disparo de um pensamento destrutivo no leitor, quando o enquadramento da questão abordada pela peça literária que a transporta – um romance, digamos – chega a um impasse sem solução, um dilema angustiante. Ao contrário, quando o romance aborda uma questão mas apresenta pelo menos algum sinal de solução ao problema básico ou ao conflito que transporta a trama da obra, gera o pensamento produtivo.

Ora, na maior parte da imprensa cotidiana – e hoje em dia na maior parte da mídia jornalística digital também – a predominância de mensagens centradas em conteúdos negativistas, estressantes, distorcidamente valorizadores da crueldade humana, dos desacertos da vida e das mazelas da sociedade, além de transportadoras de valores consumistas consumistas superficiais e alienantes, é absurda.

Não sejamos ingênuos. As mensagens que chegam ao campo sutil do inconsciente coletivo, se produzidas tão intensamente e massivamente, tão frequente e avassaladoramente portadoras de conteúdos repetidamente negativistas, estão transportando uma visão de mundo que contribui para influenciar negativamente mentes alheias, reduzindo o escopo de percepção da realidade dos receptores. Involuntariamente ou não, estão a serviço da manutenção do patamar de consciência das pessoas e de grupos sociais num nível bem reduzido. Isto é, estão produzindo preferencialmente pensamento destrutivo e portanto estão a serviço da involução, não da alavancagem do pensamento humano em direção à conquista de um grau mais elevado de compreensão do real. Estão deixando as pessoas com a sensação de impotência, tirando-lhes o poder inerente à sua qualidade humana de superação de limites e desenvolvimento efetivo como seres potencialmente integrais, sistêmicos, plenos.

Evidentemente não se trata de advogar que a mídia não deva produzir matérias de denúncia, por exemplo, nem de exposição das desgraças humanas. Esse conteúdo tem a sua função importante a desempenhar. O problema, porém, é no exagero excessivo e avassalador da mídia em transportar mensagens de conteúdo negativista, revelando pouca boa vontade para expressar conteúdos opostos, transformadores, capazes de abrir horizontes e iluminar portais da percepção para novos entendimentos, gerando assim pensamentos positivos e portanto contribuindo para a ampliação de consciência de indivíduos e grupos sociais, auxiliando na cocriação de um ambiente social e humano mais compatível com o estágio potencial de evolução que a humanidade é capaz de atingir no presente.

Assim, o JLA adota um propósito de contribuir para gerar, sempre que possível, preferencialmente narrativas e ensaios sintonizados com a ideia de transformação. Particularmente, esposa um conceito de narrativas de transformação, querendo-se dizer com isto a produção de textos sobre a vida real que navegam pelos princípios transdisciplinares abordados neste artigo e que vão além da mera constatação e relato de problemas, como faz a imprensa que ainda se vê como guardiã da sociedade apenas, buscando além deles focalizar soluções possíveis ou exemplos motivadores. Quando não pode almejar tanto, pelo menos tira a estranheza do leitor para com o diferente, o outro e o desconhecido, pelo simples fato de produzir narrativas honestas, de sincero desejo de descoberta e entendimento das realidades sociais e humanas. O JLA evita o julgamento fácil e barato, passa ao largo de querer explicar as coisas, ou de deitar pseudo verdades sobre o mundo. Simplesmente mostra a realidade sob uma ótica a mais ampla e integrada possível, costura com honestidade sua busca de compreensão.

Modestamente, que seja, esse ideário não ficou limitado apenas ao território teórico dos conceitos. É propósito deste pesquisador, na sua qualidade de docente, sempre contribuir para aliar a teoria à prática. Assim, de uma maneira estruturada, em seu período de exercício regular da docência na USP – hoje está aposentado da instituição, continua a atividade docente noutro sistema – pôde coordenar a produção de dois livros-reportagem coletivos, com seus alunos, empregando experimentalmente a aplicação do JLA.

O primeiro, O Tao Entre Nós, expôs casos pioneiros de uso de novos paradigmas transformadores em diferentes setores da atividade humana. O segundo, Econautas, abordou a questão ecológica.

Depois, quando somou esforços para junto com três outros profissionais – Celso Falaschi, Sergio Vilas-Boas, Rodrigo Stucchi – para cofundarem a Academia Brasileira de Jornalismo Literário e em seguida estabelecerem o primeiro programa brasileiro de pós-graduação lato sensu nesse campo, tornando-se docente e diretor pedagógico do mesmo, continuando assim dez anos depois, mesmo após a extinção da ABJL, pôde introduzir a proposta do JLA e estimular que os alunos aproveitassem e aplicassem, como lhes fosse possível, a prática dessa vertente de vanguarda.

Dois passos arrojados e uma breve reflexão de futuro

As iniciativas experimentais expostas até aqui formaram parte do corpo conceitual inicial do JLA, mas com o tempo esse corpo seria acrescido de dois novos aportes essenciais.
O primeiro nasceu quase por acaso, sem nenhuma intenção explícita de incorporá-lo à proposta. Foi mais, inicialmente, uma resposta a uma necessidade prosaica.

Acontece que nas minhas aulas de graduação na ECA ou mesmo nas de pós-graduação, trabalhando Jornalismo Literário, os estudantes geralmente tinham uma admiração pela modalidade. Quem as fazia por opção é porque, de fato, nutriam uma paixão por essa vertente jornalística ou por ela se encantavam, durante o curso.

Como, no entanto, minha abordagem não se limitava ao conteúdo teórico, exigindo dos alunos a condução dos conceitos e técnicas apreendidos à prática, fui constatando um certo obstáculo.

É que quase todos os alunos, jornalistas profissionais em sua maioria, estavam condicionados pela prática esquemática da produção de textos convencionais do padrão mais comum na mídia: os noticiosos, muitas vezes configurados no velho formato do lead e da pirâmide invertida. A prática do Jornalismo Literário exige naturalmente um estilo de texto mais solto, melhor elaborado, mais sofisticado, do ponto de vista propriamente literário. Mas estavam aprisionados pelo hábito, não conseguiam produzir narrativas condizentes com o estilo da modalidade.

A matriz de texto básico no jornalismo noticioso diário é o sumário. O autor resume os fatos e os relata para o leitor. No Jornalismo Literário, a matriz fundamental é a cena. Em lugar de relatar à distância os fatos para o leitor, o autor o lança diretamente no fogo dos acontecimentos, no meio do cenário real onde tudo se dá, na interação vívida com os personagens reais. Em lugar de falar a respeito, mostra. O texto é visual, cinematográfico, sensório, sensual, colorido, sonoro, aromatizado. Quem é praticante do sumário há algum tempo e cotidianamente pode se sentir travado ao tentar escrever uma cena.Percebi que precisava fazer algo para liberar esse potencial, pois senão todo o esfoço de estimular a prática do Jornalismo Literário seria em vão.

Valendo-me da condição de pesquisador atento à emergência de novas propostas conceituais e práticas nas áreas que me interessavam e da atuação profissional paralela como jornalista que me possibilitava frequentes viagens internacionais atuava na USP como professor de tempo parcial por opção, o que me permitia conciliar a atividade docente com uma carreira externa -, descobri que os avanços científicos do conhecimento sobre o cérebro humano derivados da Teoria dos Hemisférios Cerebrais tinham resultado em aplicações na área do esporte, da medicina e do desenvolvimento da criatividade. A base de tudo era o conceito de que, estimulado devidamente – no geral de forma lúdica ou visual, o cérebro seria capaz de preparar o indivíduo para melhorar o desempenho em qualquer área da atividade humana que fosse ou de ajudá-lo a transformar realidades indesejáveis rumo a estados favoráveis.

No esporte, por exemplo, a Universidade do Texas experimentava melhorar o desempenho de atletas olímpicos através de exercícios que estimulavam o cérebro a gerar um estado compatível com isto. Na medicina, a Universidade McGill, no Canadá, estimulava os pacientes em recuperação de cirurgia a acelerarem o processo de melhora mediante fantasias mentais dirigidas.

O princípio comum às duas situações é que através da imaginação lúdica e vívida se pode “convencer” o cérebro a aceitar como real uma situação que ainda é apenas projeção de possibilidade. Se o cérebro a aceita, dispara sistemicamente o processo interno que pode de fato concretizar o estado desejado. A imaginação é traduzida visualmente e lançada numa tela mental interna que o indivíduo projeta pela fantasia dirigida como existente numa área atrás da sua testa, dentro da cabeça. Trata-se da técnica da visualização criativa. Os atletas se viam imaginariamente correndo uma prova no melhor da sua condição física, psicológica e mental, por exemplo.

O paciente em convalescença se via lá fora ao sol jogando golge num lindo cenário de verde, em lugar de prostrado na cama de hospital.

Percebeu-se que produzia resultados, transformava realidades, em alguma medida e em muitos casos.

Descobri também o mapa mental, uma criação do psicólogo inglês Tony Buzan que é uma forma de expressar graficamente de maneira lúdica e espontânea os processos mentais de associação de ideias, imaginação e flexibilidade característicos do ato criativo.

E finalmente me deparei com propostas pioneiras, nos Estados Unidos, de métodos de escrita livre ou de escrita criativa. Os métodos apontavam para um procedimento totalmente diferente de estimular o desenvolvimento da capacidade de escrita e produção de textos das pessoas, quando comparados aos procedimentos tradicionais de ensino de redação. Incorporavam alguns desses princípios associados a novos paradigmas, traziam técnicas que traduziam objetivos idealizados em caminhos práticos de desenvolvimento. Uma das técnicas era o escrita rápida, que consiste na produção livre e veloz de textos, sem preocupação com as regras gramaticais, nem com os formatos tradicionais de coerência e lógica de construção de texto.

Fui experimentando esses métodos, aparando arestas, introduzindo técnicas trazidas de outras áreas, criando procedimentos novos, ajustando possibilidades. Experimentei aplicar o mapa mental à redação de textos, assim como fui associando a visualização criativa a uma série de exercícios que criava. Combinando essas três técnicas como os artifícios-mães de todo o processo, direcionado a despertar no indivíduo de dentro para fora seu potencial para escrever, criando várias outros procedimentos e técnicas, acabei por desenvolver o meu próprio método, batizando-o de EscritaTotal, método de redação espontânea em português.

Aplicando-o no contexto da produção de textos de Jornalismo Literário, percebi que cumpria o papel desejado de destravar os alunos ou pelo menos funcionava como bengala de apoio que disparava favoravelmente esse processo. O método foi sendo ampliado, testado, adaptado e desenvolvido gradativamente desde a década de 1990, até que o julguei ter atingido um bom nível de qualidade e eficiência, a ponto de configurá-lo num livro publicado com o mesmo título em 2009. Já era então uma ferramenta intelectual tanto independente, aplicável em outras circunstâncias, quanto um componente da proposta do Jornalismo Literário Avançado.

Aberta a trilha de destravamento da escrita de textos, debrucei-me então sobre outro desafio. No Jornalismo Literário produzem-se muitas vezes narrativas longas. Demandam, naturalmente, compilação, interpretação e tratamento de uma quantidade muito grande de dados, informações, análises, observações de campo, entrevistas, documentos. O autor tem uma história para contar e essa exige arquitetar e estruturar a profusão de elementos da narrativa de uma maneira coerente, ao mesmo tempo sedutora e cadenciada. Por outro lado, ao se debruçar sobre a realidade, o autor precisa pensá-la narrativamente, encaixá-la de um modo que faça sentido. Como organizar essa interpretação narrativa e como expo-la num texto de boa qualidade para o receptor da mensagem?

Numa dessas viagens internacionais, deparei-me com o livro A Jornada do Escritor , de Chris topher Vogler, um consultor de Hollywood que desenvolvera um método para analisar roteiros de cinema. O autor também apontava como alguns grandes cineastas, como Steven Spielberg e George Lucas, usavam o mesmo método para estruturar suas narrativas cinematográficas. Essa abordagem, que se revelava eficiente, resultava em parte de um livro acadêmico lançado em 1947 pelo mitólogo norte-americano Joseph Campbell, O Herói de Mil Faces, e em parte dos estudos de Carl Gustav Jung. O método, então, estava sendo apresentado com o nome de A Jornada do Herói.

Embora Vogler o apresentasse como um instrumento intelectual à serviço do cinema de ficção, usado inclusive nas animações do Estúdio Disney como o famoso O Rei Leão, vislumbrei de imediato que poderia ser aplicado, com algum ajuste, à narrativa de histórias de vida, no Jornalismo Literário Avançado. Unindo a abordagem desse autor ao estudo seminal de Campbell e ao conhecimento que já tinha da psicologia junguiana, foi possível ajustar o método tanto à interpretação e análise de histórias reais, quanto à estruturação das narrativas que as contavam.

O método se adequava muito bem à proposta do Jornalismo Literário Avançado de narrar histórias fortemente centradas em seres humanos e com o intuito de compreensão profunda, complexa, dos processo dinâmicos que configuram a realidade social, assim como a das pessoas.

Algum tempo depois em que já compartilhava essa abordagem com os alunos da pós-graduação e já esboçava o quadro completo da proposta do Jornalismo Literário Avançado, onde a Jornada do Herói se encaixava perfeitamente, Monica Martinez, então minha orientanda de Doutorado, revelou-se profundamente interessada nos estudos mitológicos de Campbell. Propôs desenvolver uma Tese que fosse um experimento de aplicação da Jornada no ensino de jornalismo, junto a alunos de graduação. Daí nasceu seu trabalho, Jornada do Herói – A Estrutura Narrativa Mítica na Construção de Histórias de Vida em Jornalismo, Tese defendida em 2002, posteriormente publicada em livro com o mesmo título.

Os aportes de Campbell, Jung e Vogler combinam-se bem no contexto do Jornalismo Literário Avançado por se constituirem em um guia confiável de interpretação das vidas humanas sob uma ótica da complexidade e dessa integração dinâmica entre fatores objetivos e sutis. Trazem a dimensão psicológica de leitura, acrescentam a mítica e arquetípica. Ampliam a lente de percepção e compreensão de significados, auxiliam o autor a identificar o sentido dinâmico das vidas e das histórias.

Esta é, pois, uma crônica histórico-acadêmica do desenvolvimento da proposta conceitual do Jornalismo Literário Avançado, assim como uma apresentação do que é e do que a constitui. A proposta como arcabouço teórico-conceitual e prático está configurada há algum tempo, assim como sua aplicação prática já teve alguns experimentos no âmbito acadêmico e uso em projetos culturais fora da academia, tal como uma narrativa biográfica recente escrita por este autor, programada para ser publicada em livro no primeiro semestre de 2014.

Contudo, há muito o que fazer pela frente. Enquanto este seu criador e autor continua a empregá-la principalmente em seus projetos narrativo biográficos fora da academia, no ambiente universitário novas gerações de pesquisadores podem conhecer a proposta, testá-la, experimentá-la e eventualmente ampliá-la.

O fato é que, quando desenhada na década de 1990, a proposta encontrava pouco eco até mesmo pelo distanciamento cultural de muitos profissionais e estudiosos do jornalismo, com relação a essas abordagens epistemológicas de vanguarda. Agora, a caminho da metade da segunda década do século XXI, causam menos estranheza. Mesmo assim, ainda falta muito para a comunidade jornalística empenhar-se em conhecê-las de maneira substancial.

É preciso que isso aconteça, à medida que a força das transformações sociais e culturais empurrem o jornalismo para se deparar com esse novo quadro conceitual já presente não mais nas ilhas de vanguarda apenas, mas também no terreno cotidiano de algumas áreas da atividade humana, como a psicologia, o esporte de alta performance, a educação de ponta. Seria triste o jornalismo não assumir uma posição proativa, adiantando-se às demandas, renovando-se, garantindo sua posição de destaque na sociedade em rápida ebulição de transformação.
A aposta, aqui, é para que este espaço diferenciado do campo jornalístico, o Jornalismo Literário, faça a sua parte, renovando-se. O Jornalismo Literário Avançado é uma oferta proativa nessa direção.

Referências

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
BRAUDEL, Fernand. Escritos Sobre a História. São Paulo: Perspectiva, 2013 (terceira edição).
CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo: São Paulo: Cultrix/Pensamento, s/d.
CRIADO, Alex. Falares: A Oralidade Como Elemento Construtor da Grande-Reportagem. Tese de Doutorado. São Paulo: ECA-USP, 2006.
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Páginas Ampliadas: O Livro-Reportagem Como Extensão do Jornalismo e da Literatura. São Paulo: Manole, 2009 (quarta edição).
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