O SAMURAI, LUKE SKYWALKER E O GOVERNANTE GENOCIDA
Penso no episódio mais recente dessa narrativa épica que estamos vivendo no Brasil atual com um sopro de alívio no coração. Momentâneo, que seja.
Refiro-me a movimentos da sociedade civil que, antes tarde do que nunca, estão dando sinais de que mais gente está acordando – e se mobilizando – para reagir ao desgoverno trágico do poder executivo federal sobre a maior tragédia humana, sanitária e econômica da história do Brasil. A perplexidade e o senso de indignidade, em mim, tiveram um alívio com as recentes notícias da carta pública de empresários e banqueiros, do manifesto à humanidade de intelectuais e artistas – que assinei – com denúncia encaminhada à ONU, e outras ações de pessoas e grupos. Todos procuram, cada um à sua maneira, reagir ao comportamento surreal do cidadão que do Palácio do Planalto coloca o país numa situação de nave tresloucada em meio à tormenta monstruosa que atravessamos, o abismo eventual, mais fundo do que já é, à vista de todos no horizonte próximo.
Considero nem tão premente assim, neste momento, encontrar base no que alguns o classificam como imbecil, louco, maquiavélico, psicopata ou simplesmente incompetente. Penso que é mais urgente encontrarmos lucidez quanto ao efeito genocida de suas ações e à responsabilidade de cada um de nós, do cidadão comum a quem ocupa alguma posição de autoridade em qualquer esfera da sociedade, diante desse desenrolar de um jogo com lances macabros no qual estamos todos enredados.
Causa-me espanto absurdo que um ano após o início deste capítulo de seguidas decisões descabidas que lançam milhões no sofrimento, fazem inúmeros países fecharem as portas para o Brasil, resultam em mortes que poderiam ser evitadas, revelam-se das mais ineptas no mundo na gestão da pandemia, esse cidadão continua com 30% de apoio popular, conforme pesquisa XP/Ipespe de fevereiro de 2021. Fico perplexo com a demora agoniante de parte da população em abrir os olhos para o comportamento gerador de caos e desordem de um mandatário cujo Ministério da Saúde recomenda o isolamento social e o uso de máscara, mas ele próprio sai em carreata sem máscara.
Onde está o nó dessa cegueira? me pergunto.
O mapa do questionamento me encaminha, inevitavelmente, para o campo integrado onde a comunicação, a narrativa, a consciência e a evolução da espécie são temas-chave entrelaçados. Complementa esse quadro a questão da percepção da realidade. Dança ali, mergulhada no oceano transformador em ebulição onde as águas podem nos levar para o poço sem fundo do terror ou para a brisa cósmica de um novo tempo iluminado aqui e agora, a figura simbólica da matrix. O aquário da realidade falsa, construída pelas crenças e visões distorcidas dos líderes cegos que julgam saber alguma coisa. Procuram, na verdade, nos escravizar em suas viseiras de comandantes pelas quais conduzem todo o exército para o precipício suicida.
Do fundo de sua alma corrompida pelo medo apavorante de olhar para si mesmo e confrontar suas sombras-monstros, o governante ferido pela sua própria ignorância, representante do arquétipo universal do rei, capitaliza o medo projetado dos súditos que nele depositam seus horrores alienantes, dando-lhe a força que o faz existir. Hitler catalisa a projeção da massa de alemães que humilhados no seu orgulho de ego pela derrota na guerra anterior dão-lhe poder para provocar a nova, num erro fatídico de resposta à oportunidade de ampliação de consciência, que seria subir uma oitava superior para além do território do ego.
O que fazem esses líderes equivocados, vampiros da energia patológica dos súditos que ignoram o chamado da vida a olharem para suas próprias entranhas e transformarem de dentro para fora sua condição de estarem no mundo, cogerando o bem comum? Criam os falsos inimigos. A culpa da humilhação alemã é dos judeus, e dos ciganos, e dos homossexuais, e das outras minorias, e dos que não foram privilegiados pela noção fake da pureza ariana. Entende?
Encontra alguma similaridade com o mandatário tristemente escolhido por razões equivocadas pela maioria dos brasileiros, leitor? Os fatos são outros, o padrão, o mesmo. Os “inimigos” da pátria não são agora os educadores, os cientistas, os indígenas, os intelectuais, os jornalistas, os ambientalistas, os opositores do grupo no poder, as pessoas LBGT?
Como reagem os súditos presos, pela comunicação maquiavélica das fake news engenhosamente fabricadas pelo palácio, a essa matrix distorcida da realidade? Medrosamente, quase sempre, não se envolvendo, não percebendo a sua corresponsabilidade para com o outro, nem entendendo a sua conexão com o todo. Durante muito tempo, os alemães fizeram vistas grossas ao ataque exterminador do nazismo aos judeus e a outras minorias, incluindo os menos privilegiados do seu próprio povo.
No Brasil, há um lado estranhamente trágico, que foi essa comunicação invertida do mandatário e seus aliados igualmente banhados de cegueira estimularem o comportamento das aglomerações e de não respeitarem as normas sanitárias que alas do próprio governo recomendavam. E, justiça seja feita, muita gente embarcou nessa não por efeito direto do desgoverno, mas por sua própria baixa consciência de leitura da realidade. Praias entupidas de gente, festas massivas em períodos de restrição ou mesmo lockdown, figuras públicas – como um famoso jogador de futebol – desrespeitando o bom senso mínimo, sem noção do efeito simbólico de seu comportamento sobre a juventude.
Há meses já se sabia que o jovem seria transmissor potencial do vírus para os velhos de sua família. Mas muitos continuaram a se comportar como se essa pandemia fosse um espetáculo macabro acontecendo num mundo de reality show, apenas, não no vizinho ao lado ou no quarto da sua casa.
A cegueira de ver não é fruto só do condicionamento cultural e político. É também resultante do congelamento de alma em não ressoar positivamente valores profundos, universais, instalados no âmago mais essencial de cada um de nós. Independentemente de cultura, povo ou época, o ser humano abriga o potencial para entender e respeitar preceitos atávicos como o valorizar a vida acima de tudo. Esses valores são estimulados a vir à tona em crises monumentais como essa da pandemia, e fazerem uma governante exemplar, como Jacinta Arden, primeira-ministra da Nova Zelândia, considerar que nessa situação o proteger a vida de seus cidadãos está acima de qualquer outra responsabilidade respeitável de um mandatário, como a das questões econômicas.
Aqui, o discurso da saúde X economia é não só ruinoso, como equivocado, míope, tacanho, ineficiente. Se não cuidamos da saúde, a economia não tem condição de se manter sadia.
Esses valores profundos parecem não ter tido eco no cidadão de Brasília. Nem em muitos de nossos conterrâneos.
Como reagir a isso, no momento em que vemos que o descalabro do mandatório está ameaçando e atingindo letalmente as vidas, a economia, a nação, o presente e o futuro imediato? Como reagir cada um de nós, cidadãos? O que fazer?
Debruçado sobre esse dilema, localizei as narrativas na história que apontam um caminho possível. Consultado sobre que conselho daria aos judeus no início da perseguição nazista, Gandhi, então muito bem-sucedido líder pacifista a caminho de conseguir a independência da Índia, recomendou a não violência. Um conselho infelizmente nada eficaz, pois a reação passiva ao nazismo, nos anos iniciais, não diminuiu a sanha destrutiva nazista. Ao contrário, a acelerou.
A outra resposta clássica, a reação pela violência, pode ser necessária, muitas vezes, mas traz junto um efeito paradoxalmente sinistro. Quando reagimos movidos pela indignação ou outra causa perfeitamente justa, podemos cair na armadilha de ficarmos presos ao ódio ou à emoção negativa associada. Se ficamos continuamente sintonizados nesse clima, podemos nos envenenar psiquicamente. E aí permanecemos escravos do nosso algoz. Desse modo, não transmutamos nosso estado emocional, não transformamos nosso nível de consciência, não evoluímos. Mas tudo o que Gaia quer que façamos, com essa pandemia, é que demos um salto quântico de evolução. Como pessoas, povos e humanidade.
Fiquei com esse dilema. Pensando como dar uma resposta a esse paradoxo, entendendo por um lado a urgência de cada cidadão fazer sua parte na reação a situações desse tipo que envolvem nosso compromisso como cidadãos para com o bem comum. E por outro, refletindo como não cairmos na maré emocional tóxica que nos paralisa e nos corrói.
Encontrei saída a essa encruzilhada na mitologia antiga e na contemporânea. Mito, digo de passagem, é narrativa com significado profundo.
Joseph Campbell, do alto de sua sabedoria como o mitólogo mais famoso do século XX, conta o episódio de um samurai que sai em perseguição do assassino de seu senhor. Encontra o inimigo, o vence e o submete. Está para completar a ação, pronto para decepá-lo, quando o vencido o cospe no rosto. O samurai recolhe a espada, então, dá as costas e vai embora.
Qual é o lance?
Se o samurai cometesse o assassinato, assim, estaria movido pelo ódio e pelo sentimento de orgulho egóico ferido. Teria perdido a causa nobre que justificava, para ele, sua ação. E estaria, na verdade, inferiorizado perante o inimigo, escravo das suas próprias (as dele, samurai) emoções.
E da mitologia contemporânea, o que me veio?
A cena antológica de Luke Skywalker no duelo com seu pai, Darth Vader, em O Retorno de Jedi da série Guerras nas Estrelas. Darth Vader, brincadeira linguística que pode ser lida como o Pai Escuro, é o arquétipo do pai – portanto líder – que caiu no lado sombrio da força, comandante do mal. Esse lado sombrio é o inconsciente, a alienação do ser com relação à sua fonte divina, sua Matrix de luz verdadeira.
Ele, Pai, por sua vez, não só escraviza, manipulando os filhos sem dó nem piedade rumo aos seus objetivos escusos, quanto, por outro lado, é escravo de uma força maior. Pensa que é dono do seu destino, mas de fato está a serviço de um superego destrutivo que o domina e o manipula engenhosamente. É o Imperador, no caso de Darth Vader.
No caso do mandatário do planalto central, é de se perguntar quais são as forças – internas, dele próprio – e do campo em torno que lhe dão esse poder efetivo, em primeira instância. A longa escala, porém, é ilusório e altamente tóxico, para ele próprio e para todos os seus “filhos” – nós, cidadãos submetidos voluntariamente ou involuntariamente a isso, como resultado da escolha da maioria – vivendo conjuntamente esse duríssimo aprendizado rumo à consciência.
Luke duela com o pai não porque quer destruí-lo e porque entende que é o único caminho de salvação de si mesmo e de quem ele representa. Quer na verdade salvá-lo! Trazê-lo de volta à Luz.
O Imperador, o grande manipulador das sombras, tenta incitar o ódio em Luke para que ataque e reaja a Darth Vader com espírito de vingança. Darth corta uma das mãos de Luke. O jovem guerreiro Jedi fica tentado, claro, a se defender com ódio. Mas, felizmente – e desculpem o spoiler para quem não viu o filme – evita o deslize da sua consciência para esse estado menor.
Só assim cresce, evolui. Só assim passa pela grande prova de sua Jornada do Herói com mérito. Só assim pode contribuir, de fato, para a transformação do seu mundo – vale dizer, dele próprio e dos outros – para melhor.
O sentido disso tudo para mim, nesse Brasil de agora diante dessa prova coletiva crucial da qual somos todos personagens reais e coautores?
Sinto que é legítima, necessária e urgente a ação de cada um e todos, onde couber e na medida específica de cada ação, em oposição às medidas insanas e arbitrárias de quem exerce o poder – infelizmente em nosso nome – de forma letalmente ameaçadora à nossa vida física, emocional e mental.
Na comunicação, honro as iniciativas, de há muito tempo, de Eliane Brum, Felipe Neto e Miguel Nicolelis, por exemplo, apontando as insanidades provenientes dos gabinetes de poder que estão arrasando o país diante de uma letargia que felizmente está dando sinais de diminuição, agora, com iniciativas tão impactantes como a do manifesto dos empresários ou as de simples assinaturas de um abaixo assinado aqui ou ali, e de quem procura um diálogo redentor buscando trazer o mandatário a uma plataforma de simples bom senso e humanidade.
Sinto simultaneamente, contudo, que esse jogo da ação concreta no mundo externo exige um trabalho interno paralelo de transformação e elevação da lucidez do indivíduo. Se a pessoa escolhe ser o Luke de sua batalha, só tem proveito de fato se entende que há uma guerra interna a ser travada, igualmente, cujo propósito é conquistar domínio real e verdadeiro sobre si, suas forças de luz e trevas que habitam potencialmente seu coração. Nesse estágio, o guerreiro tem a oportunidade de compreender que o Darth Vader externo só existe porque algo daquela energia circula eventualmente, mesmo que apenas como partícula, em si. E precisa ser transmutada.
É então que o guerreiro pode entender que ao agir com essa consciência, os ensinamentos de Yoda e outros mestres Jedi fazem sentido: “Use a Força, Luke. Você tem a Força, Luke”. A Força está dentro e ao mesmo tempo fora. É o campo unificado da essência de tudo.
Faz sentido, para mim, que o desdobramento épico dessa narrativa em movimento no mundo, disparada pela pandemia, aponta, particularmente no Brasil, para essas duas possibilidades à frente do nosso atual mar de incertezas do futuro: ou nos afundamos na lama da força dos que nos representam supostamente como extensões das nossas loucuras, ou aprendemos a merecer a sintonia com a Força que nos torna, verdadeiramente, seres humanos. Em sintonia com a Luz e o Amor que constituem a essência saudável do universo.
A prova subjacente à pandemia, parece-me, é esse teste supremo de cada um escolher o campo que deseja habitar. Pois Gaia está nos pressionando a decidirmos se ousamos evoluir ou recuamos a ponto de nos extinguir como espécie. Os campos da morte e da vida estão ambos abertos para cada um lançar seu destino e de todos. Convém, porém, escolher sabiamente.
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