A voz dos mortos

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Diego Moura

Mais vítimas

 

Mas a luta continua. No penúltimo sábado de agosto, Débora subiu a serra até Mogi das Cruzes. Lá, no bairro da Caputera buscou Lucimara dos Santos, mãe de Christian Silveira Filho, um dos mais de 30 mortos nas chacinas da cidade desde o ano passado até julho. Faz sete meses que Christian se foi. Ela ainda não conhecia as Mães de Maio.

–      Foi hoje, foi hoje! Não é bacana? Ela me abraçou, ouviu minha história. Me passou, assim, esperança. O encontro foi de aprendizado pra entender o ideal. Essa força, essa garra que ela tem é, assim, de renovação, sabe? Renovação.

Durante mais de uma hora, as mães se reuniram na Câmara Municipal com jornalistas e membros da comissão de Direitos Humanos de Mogi para marcar o início do movimento na cidade, que já perdeu as contas das chacinas, todas no mesmo formato: carros e motos com encapuzados que disparam nas pessoas em bairros diferentes. Só no bairro de Lucimara, neste ano, foram duas.

–      Eu sei que meu filho não vai voltar, mas se eu lutar, eu posso impedir que a minha vizinha chore amanhã – disse Lucimara, emocionada, durante a audiência – Meu filho já virou um número.

–      Pode ter certeza que você está no colo das Mães de Maio – respondeu Débora – Os nossos mortos têm voz. Os nossos mortos têm mães.

Débora para. Ela diz que tem alguém soprando no ouvido dela o poema feito para o curta metragem “Apelo”, da cineasta Clara Ianni. O filme denuncia os enterros diários de indigentes às dúzias no Cemitério de Perus, em São Paulo. A Mãe de Maio recita:

Levaram nossos filhos, nossos irmãos, nossos pais, nossos avós, nossos bisavôs e tataravós./Todos mortos no mesmo dia./Esse dia longo do ano que persiste em não acabar./Foram mortos pelas mesmas mãos que mudam de corpo,/Mão do mando de gente que tem as leis, o dinheiro e as armas a seu favor./É a mão do capitão do mato, que está atrás de cada homem fardado/É mão de gente que dá nome a avenidas e estradas que atravessam essas terras./Mas lembrem-se: foram nossos filhos que morreram indigentes, sem a proteção das leis e sem a satisfação do dinheiro/Foram nossos filhos que morreram, não tiveram funeral, não viraram monumento nem nome de rua./Como eles ousam negar a sepultura dos nossos?/Eles viveram! Viveram 13, 15, 20, 30 e 40 anos./Nós carregamos eles em nossa barriga, nós demos à luz, nós demos a vida e isso nós não vamos esquecer./Porque não podemos falar o nome de nossos filhos?/Como se proíbe enterrar os corpos sem nomes que se acumulam por todos os cantos?/Por que querem arrancar esse pedaço de nós?/Não esqueceremos essa parte amputada,/Essa dor que dói como uma fisgada,/Do membro que já não existe mais…/E vocês? Vão ajudar a minha mão a erguer os mortos? Vão ajudar a erguer esses túmulos?/Não deixe que meu grito se transforme em uma palavra muda a ecoar pela paisagem/Me ajude a barrar as rajadas das metralhadoras/Pois não se esqueçam: eles morreram como filhos, irmãos, pais e avôs, não como terroristas e nem como escravos./Lembrem-se que é sangue nosso que rega essa terra/Se querem que nossos mortos virem comida de saúva,/É nosso dever não deixar/Mesmo que me ameacem com fuzis/Mesmo que me aprisionem com as leis/Não podemos ter medo/Não podemos ter medo da bala/Não podemos ter medo do açoite/Eles não vão viver alimentados do meu medo/Temos que lembrar dos mortos/Temos que lembrar dos nossos/Esse é o dever dos vivos/Esse trabalho não é um trabalho perdido.

As quase 20 pessoas da sala repetem, todas, em uma só voz:

–      Os nossos mortos têm voz. Os nossos mortos têm voz.

–      Os nossos mortos têm voz. Os nossos mortos têm voz.

–      Os nossos mortos têm mães. Os nossos mortos têm mães.

A faixa negra com esses dizeres escritos, estendida sobre a mesa comprida da sala de reuniões, ganhou voz e vida.

Por um momento, ao olhar para aquela sala, pensei em dizer que Débora Silva luta há nove anos por justiça pelo filho assassinado. Não só ela. Muitas Déboras Silva vieram antes dela e outras tantas virão. E não apenas as Déboras buscam justiça, mas seus filhos, esposas, irmãos, irmãs, maridos, vizinhos. Todos lutam por justiça desde a barriga da mãe até quando o coração bate pela última vez. Se derem sorte, a juventude não fica pelo caminho, nas balas de revólveres apontados desde o berço. Seu crime é trazerem tatuados os 3 Ps que definirão seu caminho até a derradeira parada: pretos, pobres e periféricos.

***

Matéria produzida originalmente como trabalho acadêmico para o Curso de Pós-Graduação em Jornalismo Literário, epl.

Fotos: Diego Moura

Editora-assistente para esta versão publicada no site www.edvaldopereiralima.com.br:  Larissa Laviano.

Acesse todos os demais capítulos dessa matéria.

A voz dos mortos – Diego Moura – Capítulo 1
A voz dos mortos – Diego Moura – Capítulo 2
A voz dos mortos – Diego Moura – Capítulo 3
A voz dos mortos – Diego Moura – Capítulo 4

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