Infância e adolescência entre muros 8

Infância e adolescência entre muros

8

Nathalia Maciel Corsi

Um ato de amor recíproco: experiências de adoção tardia – parte 2

JL2015 Texto Site Nathalia Corsi Capítulo 8 Foto 1 003

Ellen, Willian, Samuel e Julia: o processo de adoção de Samuel ainda corre na Justiça.
Foto: arquivo pessoal de Ellen Tomazeti.

– Oh, esses aqui são teu pai e tua mãe. Eles vão vir amanhã te buscar.

Não dá pra imaginar o que passou pela cabecinha de Samuel quando viu grudada na geladeira do abrigo aquela foto impressa em preto e branco num sulfite. Ninguém disse a ele antes que teria pai e mãe novos. Os irmãos já estavam acomodados em famílias adotivas. Haviam sido separados e ele não entendia o porquê. Sentia falta especialmente da irmã, Julia, que tinha idade mais próxima da sua.

A ordem do juiz responsável pelo caso era de que os quatro irmãos fossem adotados por famílias da mesma região, possibilitando o convívio entre eles. Achar adotantes para Samuel foi mais difícil do que para os irmãos, por ele ser o mais velho, menino, pardo, além de tomar medicações para bipolaridade.

Sem nenhum preparo psicológico, o menino teve uma única noite para assimilar aquela notícia. Quando a diretora do abrigo disse que ia apresentá-lo ao casal, abaixou a cabeça e psssssssssh, se mandou para o quarto. Estava assustado. Foi necessária muita insistência para que ele aceitasse estabelecer algum contato com os estranhos que diziam ser seus pais.

O mineirinho Samuel caiu sem paraquedas numa família curitibana. O período de adaptação foi conturbado. Além de bastante diálogo e firmeza, muitas vezes foi preciso contê-lo fisicamente. Chutes, tapas na cara e unhadas faziam parte do repertório cotidiano. O comportamento do piázinho era de uma agressividade a qual Ellen e Willian nunca haviam presenciado.

– Eu vou enfiar uma faca no seu bucho.

Esse era o tipo de coisa que Ellen teve que ouvir quando o filho de oito anos chegou em casa, trazendo consigo uma bagagem de muita violência. “Ele perguntava pro meu marido porque ele não batia em mim!”, indigna-se. O casal venceu o choque inicial e se dedicou a ensinar a Samuel que não é normal um homem bater numa mulher e que não é natural enfiar uma faca no bucho de alguém, entre tantas outras posturas condenáveis. Para ele, foi difícil ouvir que as referências que conhecia estavam erradas. Precisou abandonar tudo o que tinha como verdade, e isso significou renunciar à mãe e ao pai biológicos.

Nunca haviam sido feitos laudos médicos para atestar a bipolaridade da criança, ou constatar que os problemas aparentemente psiquiátricos davam-se pela própria condição de abrigamento. Após exames, diagnosticou-se que Samuel tem apenas problemas de aprendizado. DPAC, Distúrbio de Processamento Auditivo Central, e DDA, Distúrbio de Déficit de Atenção. “Ele não aprende na mesma velocidade das outras crianças e precisa de mais incentivo, mas aprende e é muito inteligente”, garante a mãe Ellen.

Assim que adotaram Samuel, Ellen e Willianpediram a suspensão de sua habilitação pelo prazo de um ano. Quando viram que o garoto já estava adaptado à rotina familiar, entraram novamente no CNA. Mudaram o perfil para menina, de zero a oito anos, qualquer etnia, aceitando deficiências leves, HIV positivo e qualquer histórico. Samuel participou dessa escolha. A irmã deveria ser mais nova que ele. Por conta do perfil aberto, a família se preparava para uma nova adoção tardia. O quarto, inclusive, estava montado para uma menina maiorzinha. Oito meses depois, veio um bebê. O casal teve quinze dias para correr atrás de berço, roupas, fraldas, sapatinho e os demais itens necessários. Julia, xará da irmã biológica de Samuel, chegou com um ano e três meses de idade. Ué, que tempo curto de espera para um bebê!!! O que restringiu o número de possíveis adotantes para Julia não foi a idade, mas as outras características. Negra e filha de drogados, nasceu com sífilis e uma má formação no intestino.

Com a Julia, a adaptação necessária foi dos pais, já que a demanda dela não era psicológica, mas física. Samuel desde que chegou tomava banho sozinho, levantava sozinho, arrumava a cama sozinho, brincava sozinho. Com ela, foi preciso tentar entender cada choro: se era de fome, de medo, de frio; além de dar banho, dar papa. É uma demanda física que não para, porque bebê exige atenção 24h. O problema no intestino precisava de tratamento e cuidados de enfermagem, que foram devidamente orientados aos pais. Ao ver que uma criança dependeria dela pra tudo, Ellen ficou assustada. Julia era muito miudinha, usava roupinha para bebê de nove meses. Pela idade, já deveria estar andando, mas estava começando a engatinhar. Era grande a falta de estímulo. “Essa foi a diferença maior. Em questão de relacionamento emocional, ambos são iguais. A sensação de cuidado, de carinho, de vínculo, os dois despertam da mesma forma”, derrete-se a mamãe.

Os desafios enfrentados não se esgotam dentro de casa. Estão em todo lugar. Em muitos casos, há manifestações de preconceito na família. Na rua, questionamentos constrangedores são feitos mesmo por estranhos.

Fui comprar ração pros meus cachorros. Eu sempre vou no mesmo lugar. A Julia tava dormindo no meu colo. E a mulher me conhece há mais de 10 anos. Ai ela viu ela no meu colo e falou:

– Quem é essa menininha?

– É minha filha!

Ai ela, no meio do pet shop, que é imenso, falou pra todos os funcionários dela ouvirem:

– EU NEM VI ESSA MULHER GRÁVIDA, ELA TA COM NENÉM NO COLO. (Todo mundo olhou).

– Não, eu tava grávida. Eu tava grávida do coração, mas eu tava grávida.

Então existe essa coisa de reafirmar, porque as pessoas ainda veem que filho por adoção não é filho de verdade. É seu filho de verdade? É, seja por adoção ou biológico, é filho. Tem um papel lá que diz que é meu filho, é meu.

*

Semana passada eu fui num aniversário. Uma senhora sentou ao lado da gente. Eu não sei como ela sabia que meus filhos eram filhos por adoção. A Julia ta na cara, porque a Julia é negra. Mas o Samuel é uma cópia fiel do meu marido. Uma cópia autenticada em cartório do meu marido. Ninguém diz que não é filho dele. A mulher sentou na mesa..ela olhou assim…meu filho estava sentado comendo, e ela olhou pro Samuel e olhou pra mim e falou:

– Deve ser difícil isso né, começar uma família com filho assim.

Olhei pra ela e falei – não, não é não. E virei a cara.

– Mas não é difícil começar a família com filho criado desse tamanho?

Meu filho foi murchando assim, ele foi descendo da cadeira. Me deu vontade de pular no pescoço daquela mulher. Ela não tem o mínimo de sensibilidade. Ela tava ali, do lado do meu filho. DO LADO! Ai eu virei pra ela, acho que falei com tanta raiva que ela levantou da mesa e foi embora,

– Não, não é, apesar do tamanho, ele é meu bebê. E abracei ele.

Nisso, ele abriu um sorrisão. Mas assim, as pessoas não tem semancol. Eu não tenho vergonha nenhuma e ele também sabe… quando o pessoal pergunta como é a adoção, demorou muito? Ele mesmo fala, ele sabe e ele vai nos grupos de apoio contar a história dele. Mas existem formas de falar. Ela poderia ter dito assim: é difícil a adaptação de uma criança maior? Beleza, existem formas de perguntar, sem magoar a criança. Ele vai ter que aprender uma hora, ele ainda é muito novo, ele tem dez anos, mas a idade dele mental é de sete, então mentalmente ele é novinho, tem um atraso ali. Acho que ao longo dos anos ele vai aprender a se defender e a falar, mas ele evita falar, por exemplo, na escola que ele é filho adotado. A escola tem ciência, mas ele não expressa isso pros colegas. Tem medo da reação, do preconceito.

Ellen se chateia com elas, mas tira essas situações de letra. Sempre tem uma boa resposta preparada. A preparação fez com que superasse todos os aspectos ruins da adoção: o comportamento violento do filho, a depressão pós-adoção que enfrentou, um pinguinho de crise no casamento. Tudo isso passou. O que coleciona são os momentos diários de amor entre pais e filhos que divide com William.

Eu tava na cama deitada no domingo de manhã e ele veio na minha cama.

– Posso deitar com a mamãe?

– Pode. Ele deitou comigo.

E ai, de repente, ele se enfiou de baixo da coberta, deitou no meio das minhas pernas, e falou assim:

– O bebê tem que nascer.

Eu já sabia que algumas crianças faziam a representação do nascimento da família biológica, eu falei assim:

– E agora? Então nasce.

Ai ele sentou e me abraçou: fez o neném nascer. Esse foi o momento auge da adoção. Ele de fato me aceitou como mãe naquele momento. Mas a gente teve que passar por cinco longos meses de muito estresse e muito trabalho. Não foi fácil né? Mas nem toda adoção tardia dá trabalho. A minha deu exatamente porque ele demorou muito pra sair da família biológica, então ele vivenciou muita violência, muita agressão… então ele trouxe.

O trabalho duro valeu a pena.

O Samuel fala que eu sou a melhor mãe do mundo. De todas as mães que ele teve, ele acha que eu sou a melhor mãe do mundo. Tem até uma musiquinha que ele canta “melhor mamãe do mundo, melhor mamãe do mundo, brinca um pouquinho, brinca um pouquinho, melhor mamãe do mundo”.

*Os nomes das crianças e adolescentes abrigados foram substituídos nesta reportagem para proteger sua identidade.

Continua.

Infância e adolescência entre muros – Nathalia Corsi – Capítulo 1
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