A vida que me criou assim

A vida que me criou assim

‘A vida que me criou assim’
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Laila Braghero Vicente

Jornalista, pós-graduanda no Curso de Pós-Graduação em JL, epl, turma 2015. Atualmente é repórter do jornal O Semanário, de Rafard (SP), e fotógrafa freelancer. Em 2013, recebeu o prêmio de melhor jornal mural da Expocom Nacional, e melhor projeto multimídia entre os TCCs de Jornalismo da Unimep, em Piracicaba (SP), no 25º Prêmio Losso Netto de Jornalismo.
lailabraghero@gmail.com

A vida que me criou assimSentada em um pedaço de varvito, mais conhecido como pedra de Itu e ex-integrante da antiga calçada, Virginia contempla uma folha caída no chão entre tantas outras no jardim da frente da casa cor-de-rosa. Havia me levado até ali para mostrar o local onde costuma passar quase todas as tardes observando o movimento da Rua General Osório, no Centro de Capivari (SP). “Eu vejo alguém que passa, que olha, que apanha flor. Eles não me veem.”

O casarão é tão antigo quanto a atual proprietária, que chegou à cidade em 1949. Sabe-se que foi comprado pela dona anterior, dona Jovita, em 1908. Já foi menor, porém sempre com a mesma formosura. Tem até livro sobre o lugar – A casa de Capivari –, escrito por toda a família em 2008. Os mais novos na época deixaram suas contribuições em desenhos.

Nesse domingo, 23 de agosto de 2015, com a bengala na mão esquerda, Virginia tenta puxar para si a folha amarela enquanto fala, como se quisesse tirá-la do caminho, protegê-la de algum par de pés calçados e assassinos. Recorda-se do ginásio e de como aquele órgão resumido a clorofila era importante para a professora de Biologia Branca do Canto e Melo, descendente da Marquesa de Santos. Hoje, ela crê que parte das instituições já não dá muita relevância ao jeito lúdico de ensinar.

“A gente vivia procurando folhas de vários tipos. Essa, por exemplo, é bem diferente. Parece uma seta. A gente ia onde tinha jardim pegar folhas para fazer o herbário. Agora tem de todo jeito aí e não vem ninguém buscar. Ninguém se interessa.” Essa professora, conta, também deu a ela aulas de Francês e História. “Ela deu aula em várias épocas. Era muito inteligente. Quando fez concurso para ser professora, havia gente que foi especialmente para assistir a prova oral dela.”

Virginia Bastos de Mattos gosta de falar dos tempos da escola. Integrou a turma de 1925 da Caetano de Campose se formou em Filosofia pela Faculdade de São Bento, ambas em São Paulo. “Era a Escola Normal da Praça, como eles chamavam antigamente. Depois fui à Faculdade de São Bento, que era particular, ali mesmo, bem no Centro, no Largo de São Bento. Tem o colégio e em cima a faculdade.”

Trocava as panelas pelos cadernos desde a infância, quando tinha o sonho de ser jornalista. Mas não foi atrás por causa da mãe, Maria Luiza, que acreditava que as redações não eram ambientes adequados para mulheres. Além disso, as palavras saíam embriagadas das máquinas de escrever, que enfrentavam longas madrugadas e o frio da capital paulista.

Por outro lado, a mãe de Virginia sempre apoiou os estudos da menina e dispensava a ajuda dela na cozinha, já que nunca teve muitos dotes culinários. “Ela falava: ‘tem de estudar, vai’. E minha irmã gostava de ter essa folga para não estudar.” Ela é a mais velha de cinco irmãos e a única viva. Dois deles morreram ainda crianças. “Foi o trauma das nossas vidas.”

“Uma morreu bem pequena e outro morreu com 12 anos. Sofremos tanto. Um menino sadio que teve apendicite supurada.” Dois anos depois, Maria Luiza ainda não tinha superado a perda. “Quando me formei na Escola da Praça tinha uma missa e mamãe não foi. Ela disse: ‘ah, Virginia. Tantos dias para escolher, foram escolher 12 de dezembro?’ Falei: ‘mas não fui eu que escolhi’. Mas mamãe não foi na minha missa”, diz, com a voz meio embargada.

Enquanto conversávamos, o mais novo dos oito filhos de Virginia regava as plantas maltratadas pela falta de um jardineiro. “A gente tinha um, mas eles estão muito careiros, porque são poucos. E também não temos certeza se eles sabem [o que estão fazendo]; vão cortando tudo. Quando meus filhos moravam aqui eles cuidavam muito. Principalmente o Antonio, que gosta de planta.”

Apesar disso, Otavio foi quem tomou a iniciativa naquele dia. O Jean Reno de pele capuccino e educação nitidamente herdada de Virginia, característica comum entre os membros daquela família, arregaçou as longas mangas da camiseta polo listrada de azul marinho, vermelho e branco e botou a mangueira para trabalhar.

Para a mãe, o turismólogo, que não exerce a profissão, “faz um pouco de tudo” no setor administrativo da Secretaria de Esportes da Prefeitura de São Paulo. “A mulher dele trabalha lá”, disse em nossa conversa inicial, três semanas atrás. Valderez, 54, cursou Turismo – o casal se conheceu na faculdade – e, na verdade, se aposentou recentemente.

– A senhora lembra a idade do Otavio?

– Mas parece incrível como não me lembro de nada.

– 55. – respondeu Railda, durante minha primeira visita à professora.

Era manhã de segunda-feira, 10 de agosto, e a cuidadora de idosos varria a casa enquanto eu conversava com Virginia na sala de jantar. Entre palhas e rasteirinhas arrastando pelo assoalho, ficava de ouvido na conversa para acudir a senhora caso ela se perdesse nas memórias. A cada pausa para lembrar o nome de uma das proles, a baiana parava a vassoura e franzia a testa, fitando a mulher por trás. Quando o danado do substantivo próprio voltava à lembrança, ela retomava o serviço.

Tchá, tchá… TCHÁ, TCHÁ. Railda ia e voltava entre um quarto que parecia ser o de Virginia e a sala. Morena, tinha os cabelos castanhos escuros presos com uma presilha branca abaixo do coque, baby look azul marinho e calça jeans com pequenos brilhos nos bolsos de trás. A rasteirinha era bege e abotoava na altura do tornozelo.

Aos 31 anos, está com dona Virginia há três e em Capivari desde 1994, quando os pais vieram da Bahia em busca de emprego. Chega de manhã e passa o dia cuidando da casa, da roupa, da comida, de Virginia. Aos sábados, vai embora após o almoço e folga aos domingos. E não dorme lá. Isso é função de outra cuidadora, Ivani, que foi contratada há cinco meses.

“Ela ficou 40 dias de cama com dengue. Depois disso, os filhos acharam melhor contratar alguém pra ficar à noite. Antes ninguém dormia com ela, porque ela só aceitava eu aqui. Agora está aceitando melhor a outra”, contou. “Mas se perguntar [da dengue], ela vai falar que foram só dois dias.”

Também pudera. A dois meses de completar 100 anos, Virginia tem apenas lapsos de memória quando o tema é mais recente. A pressão arterial é melhor do que a de Railda, reconhece a própria cuidadora, e não toma nenhum remédio. Só algumas vitaminas quando o médico indica. As pernas continuam vistosas como reafirmado dia desses por minha vó, 15 anos mais nova – dona Mariquinha costumava admirar a beleza de Virginia na missa.

Naquela ocasião, eu estava sentada em um sofá de três lugares próximo à porta branca de madeira da entrada. Virginia havia se ajeitado à minha frente, em uma das duas poltronas cinzas, que um dia foram tão rosas quanto a casa e fechavam o círculo de opções de assentos, além de uma cadeira. Suas costas, longe do encosto, eram levemente curvadas e acentuavam o olhar desconfiado que ela me lançava no início do papo.

A meia-calça fio 15 estava coberta das batatas das pernas para cima por um vestido branco com estampa geométrica. Este, por sua vez, se escondia em parte por um casaquinho rosê com meia dúzia de figuras na altura do peito que me lembraram espadas de baralho. A mão direita sobre os joelhos apalpava com cuidado cada dedo da companheira esquerda. Os cabelos, bem branquinhos, foram penteados para trás.

– Deixa eu ficar mais perto pra ouvir bem.

– A senhora quer por o aparelho? – pergunta Railda.

– Hein?

– Quer por o aparelho?

– Não. Ele tá sem pilha.

– Chegue mais perto dela pra ela ouvir direito.

De imediato, salto para um banquinho de madeira semelhante àqueles que a gente repousa o pé para ver tevê. Sentei com o corpo de lado, mas fiquei mais bem colocada à frente de Virginia, de modo que ela me ouvisse melhor e lesse meus lábios com facilidade. Comecei falando sobre o projeto e minha pós-graduação em Jornalismo Literário, mas logo fui interrompida.

“Sabe, eu não quero cortar seu ideal de fazer alguma coisa, mas eu não sou uma pessoa que estou vivendo hoje. Eu já vivi. Eu estou acabando os dias. Eu sou quase centenária.” Sem que eu argumentasse, ela continuou. “Já não tenho mais essa participação entusiasmada. Pode ser uma participação afetiva. Quero bem a cidade, que não é a minha cidade, mas eu quero bem. Nunca morei tanto tempo num lugar só como eu moro em Capivari.”

Notei certa preocupação na fala de Virginia, mas só saberia o motivo minutos mais tarde. Sem mais explicações, contornei sua falta de vontade em falar sobre o agora perguntando sobre seu passado, tão presente ainda hoje. Não tem como falar dessa mulher sem repassar esse século de vida que exala por cada centímetro de seu corpo, compartilhando uma sensação de tranquilidade que só sentindo para saber como é.

Conversamos, então, sobre quando ela se mudou para a Terra dos Poetas e sobre o marido, com quem dividiu os problemas e somou a sabedoria durante 57 anos até ele morrer, em 1993. Nascida em São Paulo no dia 20 de outubro de 1915, se casou com o professor de Filosofia e Francês Carlos Lopes de Mattos, cinco anos mais velho, na capital do Rio de Janeiro. Lá, eles tiveram três filhos, Maria Luiza, Daniel e Carlos Alberto.

De volta à capital paulista, nasceram mais dois: Maria Virginia e Antonio Carlos. Pergunto se Maria Virginia tem acento. “Não. No meu tempo nada tinha acento. Mas você pode por à vontade, porque não é Virginía, é Virgínia, paroxítona.” Já em Capivari, cidade que Carlos escolheu para lecionar após ser aprovado em um concurso público, o casal teve mais três filhos: João Augusto, Maria Augusta e Otavio.

Um engenheiro agrônomo, um técnico agrícola, duas professoras, um juiz, uma bibliotecária, um engenheiro eletrônico e o turismólogo. Daniel, o técnico agrícola, e Carlos Alberto, o juiz, já morreram. “Foi tão rápida a morte do Daniel. Ele andava um pouquinho desequilibrado, fora das regras da vida. Não lembro bem. É um tempo tão obscuro para mim. Meu marido tinha morrido há pouco tempo também e eu estava muito fragilizada. E o Carlos Alberto foi ficando com problemas no estômago e acabou morrendo [em 2004].”

“Hoje eu estou fora do tempo, sabe?”, recomeça, depois de não ter conseguido lembrar em que ano o mais velho se foi. “Tem uma amiga que está bem doente e estou só pensando nela. Não estou muito boa para entrevista.” Ela se referia à sua melhor amiga, Glaucy Quagliato. “Ela está internada na UTI, mas não tem notícia. O médico falou que tem de aguardar, então a gente fica assim preocupada.”

Para descontrair um pouco, pergunto qual o segredo da longevidade de dona Virginia, bem como das pernas tão invejadas por mulheres de sua época e até mais novas. Ao contrário das mil e uma lorotas que vemos nas capas de revistas femininas, me lançou uma resposta que pode agora acabar com as últimas esperanças de muita gente por aí. “É genético.”

Na família por parte de mãe, ela afirma que teve muitas centenárias. “Fui à festa de uma que estava fazendo 103, e outras eu sabia por notícias que viveram mais de 100”, garante. “Mas isso não é mérito da gente, porque não é esforço. Não fiz nada para ter essa idade. A vida que me criou assim.” Apesar de sentir leves dores nas costas vez ou outra, não tem restrição alimentar.

Continua.

A vida que me criou assim – Laila Braghero Vicente – Capítulo 1
A vida que me criou assim – Laila Braghero Vicente – Capítulo 2
A vida que me criou assim – Laila Braghero Vicente – Capítulo 3
A vida que me criou assim – Laila Braghero Vicente – Capítulo 4

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