‘A vida que me criou assim’ 3

LaILA 4 virginia bastos de mattos 4

‘A vida que me criou assim’

3

Laila Braghero Vicente

 

Macarronada

No domingo, os familiares de dona Virginia chegaram quando ainda estávamos no jardim. Otavio parou de molhar as vistosas camélias brancas para tirar a corrente do portão de ferro, também branco. Um dos netos, o analista de sistemas Rafael, 42, filho de Carlos Alberto, chegara com a esposa Roberta, da mesma idade, e com o filho mais novo deles, João Pedro, 13.

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Ouço três portas batendo e um casal de vozes dizendo “olá”. Me levanto para cumprimentá-los, enquanto Virginia continua sentada na pedra de Itu.

– A senhora quer ir lá?

– Não. Eles vêm aqui.

– Oi, Roberta. Nós estamos aqui.

– Que gostoso, tomando sol. – responde a advogada. Morena de cabelos longos, vestia uma regata branca por dentro de uma saia verde água com flores bordadas, contrastando com as sapatilhas amarelas. – Oi, tudo bem? – diz, vindo ao meu encontro. Nos apresentamos.

– Ela está fazendo uma reportagem. Estou sendo entrevistada. – conta Virginia.

– Ah, é? Ah, que legal. Então estamos atrapalhando.

– Ah, uma jornalista. Que chique, hein, vó? – brinca Rafael. Após cumprimentá-lo também, explico ao trio o motivo da conversa e digo que, no dia da macarronada sagrada, meu objetivo é observar.

– Vixe, hoje vou ter que me comportar.

– Ih, Rafael… – ri Roberta, seguida dos demais. – Deixa eu colocar a sacola lá e a gente volta.

– Acho que nós vamos também – informa Virginia, levantando.

– Mas tá gostoso aqui. A gente pode ficar – defende Rafael.

– Tá porque não é você que tá sentado aqui.

O almoço saiu por volta das 13h. Antes disso, a família trocou um dedo de conversa na sala de jantar. Rafael, com a pele bem mais clara que os demais, barba e bigode, faria o macarrão com molho de tomate. O bate-papo não tirou a concentração de Tatiana, 20, filha de Otavio e Valderez, que, nesse jogo de “ou estuda, ou faz comida”, opta pela primeira atividade e não desgruda do iPad. Ela lembra muito o avô, segundo dona Virginia.

“Nada atrapalha a Tati”, começa, mexendo a cabeça em direção à mesa onde a neta está estudando. “Ela faz o que tem de fazer, a prosa aumenta e ela fica ali. Meu marido também. O Carlos ficava ali. O rádio ficava ligado e ele estudando. E as crianças pulando, correndo. De vez em quando ele entrava na prosa de um e depois continuava. Eu não consigo. Eu preciso me esconder para estudar, se não me distraio com qualquer coisa.”

A matriarca belisca com o palito de dente pedacinhos de pizza trazidos pela nora para forrar o estômago. Estava com o mesmo casaquinho rosê de segunda-feira, desta vez sobre um vestido de listras verticais e pregas. “Meio-dia nós almoçamos”, me garante às 11h30, curvando o corpo para a direita, na minha direção. Estávamos sentadas no sofá de três lugares e os demais faziam nossa volta. A afirmação, porém, veio seguida de muita gargalhada.

– Olha o cozinheiro onde está. Ela falou que meio-dia a gente almoça e você está aí batendo papo. – adverte Roberta, em tom de brincadeira.

– Meio-dia? Então deixa eu ir lá.

Rafael ainda esperou mais uns 15 minutos sugeridos pela esposa e foi. O restante da família foi atrás. Enquanto ele mexia a massa no fogão, João Pedro ralava o queijo, Roberta picava o cheiro-verde e Otavio desenformava o pudim que ele havia feito com leite de caixinha pela primeira vez. Valderez, que já tinha preparado o frango com batatas, passou para o posto de copilota. Todos ajudaram. Até Tati deu folga ao iPad.

A cozinha não é muito grande. De um lado, fogão, pia, geladeira e prateleiras. Do outro, mesa de fórmica, outra geladeira, três peneiras penduradas em uma porta que poderia ser um armário embutido e mais um armário, antigo depósito de lenha. A casa também tinha poço, porque a água encanada não era suficiente. Ele ainda continua lá, com a tampa de cimento, mas vazio. E no banheiro não tinha privada, porque a antiga dona dizia que deixava a casa cheirando mal. Com a mudança, também foram instalados um chuveiro e um bidê. A banheira saiu.

Além disso, a casa tinha apenas três quartos. Para comportar a família, Carlos mandou construir uma casinha no quintal com mais dois dormitórios, embaixo de uma pereira, cujo tronco aberto já apodreceu. “Quando nós chegamos aqui ela já era velha.” Não coincidentemente, a família batizou o local de Domus Piri (Casa da Pera), assim mesmo, em latim. “Meu filho Carlos Alberto fez até uma placa com casca de árvore e uma pera de massinha, mas roubaram a pera. Não sei como. Ou caiu e sumiu na enxurrada. Não sei.”

Ao lado da Domus Piri existe uma extensão do quintal onde vivem, do outro lado do portão de madeira, ao menos sete jabutis. No domingo, Otavio me mostrou um bebê jabuti que nascera naqueles dias. Quando pequeno, eles retiram o animal do bando e cuidam dentro de uma caixa, para assegurar que ele não se perca no meio do mato e receba a alimentação necessária.

Continua.

A vida que me criou assim – Laila Braghero Vicente – Capítulo 1
A vida que me criou assim – Laila Braghero Vicente – Capítulo 2
A vida que me criou assim – Laila Braghero Vicente – Capítulo 3
A vida que me criou assim – Laila Braghero Vicente – Capítulo 4

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