A voz dos mortos 1

A voz dos mortos

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Diego Moura

Jornalista formado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e pós-graduando no Curso de Pós-Graduação em JL, epl, turma 2015. Atua como repórter no jornal O Estado de S. Paulo e se interessa pelas boas histórias das múltiplas gentes.

disimoura@gmail.com

A voz dos mortos | Jornalismo Literário

Ventos de quase 100 quilômetros por hora varreram a Baixada Santista na última quinta-feira de agosto e não pouparam nem o descanso dos mortos. Por todo o Cemitério da Areia Branca, em Santos, os pequenos vasos de flores artificiais colocados pelas famílias, boa parte deles no último dia dos pais, rolavam aqui e ali no chão de cimento cru por entre as gavetas dos túmulos.

Pulando poças d’água no chão irregular, Débora caminhava com familiaridade pelo labirinto de gavetas, ossuários e mausoléus. Olhava para cima, procurando conhecidos. Andorinhas voavam para lá e para cá, contrastando com o céu branco.

–      Parece que elas sabem quando eu venho aqui – comentouDébora – Uma andorinha sozinha acorda um bando.

Perdeu a conta de quantas vezes visitou o ex-marido, Edson Barros dos Santos, sepultado ali em 1991 e, desde 15 de maio de 2006, o filho mais velho do casal, Edson Rogério Silva dos Santos, morto aos 29 anos. Ambos assassinados por policiais militares, segundo os indícios que ela mesma teve de sair procurando. No caso do marido, desqualificou o exame cadavérico, que tinha apontado overdose. Edson Barros não usava drogas, mas foi “socorrido” pela Polícia Militar. Algumas semanas antes testemunhara um crime cometido por PMs e, depois da intervenção de Débora no Instituto Médico Legal, ficou comprovada a morte por traumatismo craniano causado por objeto contundente. Ninguém foi investigado.

A moradora do Jardim Bom Retiro contabiliza ainda um irmão que desapareceu nos anos 1980. Ela acredita que grupos de extermínio da PM executaram a obra.

Chegamos à morada de Rogério. O túmulo dele, de granito, tem a foto do rapaz em uma pequena moldura metálica e se destaca entre os outros, cujos nomes e datas de nascimento e morte foram escritos no cimento fresco usando, provavelmente, um palito. Chama a atenção o aviso para que não acendam velas.

–      O Rogério odiava velas – ela acha graça, mas logo apaga.

As tristezas pouco a pouco tiraram boa parte do brilho e da alegria da mãe. Na casa para onde se mudou há pouco tempo, em meio às caixas e malas, ela mostra os álbuns de fotografias da família antes da morte de seu primogênito. Fica nítida a existência de duas Déboras: a do papel brilhoso, que sorri, vibra, comemora seu aniversário com bolo, guaraná e pessoas queridas; já a que me aponta os personagens de sua vida é triste, dura, não faz mais festa de aniversário – sua primeira providência depois do assassinato do rapaz foi jogar a churrasqueira no lixo. Aliás, ela deixou de ir em qualquer aniversário porque não consegue mais ouvir o “parabéns a você”. O som machuca os ouvidos e o coração pela lembrança do filho.

–      O que a gente curtia era isso – aponta a foto. E acabou. A polícia acabou com a minha vida, com o meu direito de brincar, com o meu direito de curtir.

Continua.

A voz dos mortos – Diego Moura – Capítulo 1
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